Água, respiração e presença

Viu&Review
6 min readJul 15, 2021

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Por: Hanna Lagoa

Esse é um texto sobre criação e felicidade numa conjuntura de morte, terror e opressão. Não sei se alimenta o algoritmo, não sei se é o que as pessoas têm buscado. Mas hoje é sobre o que dá vontade de dizer. Ah, e tem um monte de spoiler do filme. Não deixe de ver por causa disso, caso surja a oportunidade.

Falando em vontade, esses tempos tenho pensado bastante sobre sexualidade. Melhor, sobre o poder de criação e transformação que o encontro com nossa sexualidade pode conduzir. Desejo. Além disso, sobre os encontros proporcionados por esse poder, que é pessoal, de alguma forma também individual, intransferível. Como um encontro com outra pessoa pode proporcionar um encontro que é seu, pra dentro, profundo. Essência? Ou ainda, o que dentro de nós vibra uma vontade de essência. Desejo.

Meu encontro com o filme “A felicidade delas”, de 2019, dirigido por Carol Rodrigues, se deu no final de 2020, quando fiz o curso de Carol Almeida com tema “A representação e o além da representação da mulher no cinema”. No contexto da aula, fizemos uma análise do filme, a partir dele e de tantas outras referências discutidas no curso. Depois, o filme ficou reverberando dentro de mim muita coisa para além do que cabe nesse texto. O arrepio. Muita água. Talvez seja também minha história pessoal e o encontro eu-filme, que me intriga nesse contexto. Esse filme me proporcionou, num momento de cansaço, desgaste, exaustão, uma força criativa que talvez ainda me acompanhe. Eu também sou água. Eu também vibro sexualidade quando crio. E tenho encontrado nisso um refúgio em tempos de morte, terror e opressão.

Acontece que ultimamente erotismo e sensualidade têm sido sinônimos de três coisas para mim: respiração, água e presença. Talvez sejam elementos bem óbvios, mas nunca tinha parado para pensar nisso antes. Não existe intimidade sexual, erotismo, sensualidade num encontro com outra pessoa ou com você mesme que não atravessem esses três pilares. E política. Ultimamente a política entrou pra cama com todo mundo. No clima de polarização intensa que vivemos, tem ficado cada vez mais evidente que não existe possibilidade de desconectar a atração sexual da convergência política. Na verdade, na verdade, nunca houve. O corpo faz parte do discurso político, e sempre fez.

O filme começa assim: corpos femininos marcham e bradam palavras de ordem contra o domínio masculino sobre seus corpos num protesto em São Paulo. Elas protestam por agência, pelo direito de escolha que restringe corpos femininos, pelo fim da violência estatal contra a mulher. Dois corpos, de mulheres negras, são apresentados. Elas não parecem se conhecer. Quando a polícia aparece para reprimir e dispersar, entretanto, elas correm na mesma direção. Isso de correr na mesma direção por acaso me intriga. É o caminho-fluxo que nos leva em direção ao que não esperamos. Ao encontro. À transformação? Este é um bilhete cheio de esperança.

Mas enfim, elas correm na mesma direção e por causa disso, se encontram numa encruzilhada. Ou quase isso. Enquanto uma delas se esconde atrás de um carro, a outra é abordada pela polícia. É aí que elas trocam olhares. E foi aí que esse filme me pegou, mas pegou mesmo. A viagem é que o olhar é um gesto-símbolo de poder. Bell Hooks, em seu ensaio sobre seu conceito “Olhar opositor”, comenta sobre como o olhar é usado para estabelecer relações de poder primeiramente entre pessoas, e ela parte da relação entre escravizadores brancos e pessoas negras no período colonial americano. Quem olha pode, e abaixa os olhos quem é condicionado, por uma conjuntura política, a obedecer. Esta é uma síntese bem limitada, mas vamos partir daí. O olhar como potência-poder-agência. Gesto. O olhar, também, como possibilidade de revidar, resistir e desobedecer. No cinema, esse lugar e esse poder é historicamente reservado ao homem. Desde a década de 40, quando os homens passaram a dominar o cinema na Europa e EUA, eles desenvolveram sofisticadas formas de tornar a mulher objeto do desejo nas telas de cinema. E o olhar é direcionador do desejo. Ele mira, aponta e atira. O poder de olhar, o poder de desejar. E às mulheres, historicamente, cabe ser alvo de um olhar masculino. Mas não nesse aqui e agora. Aqui, elas miram uma à outra. Uma pega uma pedra e joga numa vidraça, deslocando o policial para o outro lado, e as duas correm. Juntas. Dessa vez, por escolha. Eu fiquei presa nesse gesto.

A fuga as leva para um lugar escuro, em ruínas. Uma casa abandonada, talvez. Ofegantes, respiram juntas. Dividem um pouco de água. Água, respiração e presença. A casa é cheia de graffiti, e uma delas pinta duas mulheres negras, abraçadas num espaço na parede. A pintura aparece como gesto que envolve, olhar, projetar e mãos que criam. Pintar também é uma poderosa referência ao poder sensual e erótico de uma pessoa. Mas vou chegar lá. Antes que algo mais aconteça, elas percebem a chegada da sirene da polícia. O tempo, o externo que havia sido suspenso, entra em cena e um brilho de luz azul-vermelho é tudo que precisamos para entender que o terror ainda não acabou. O Estado ainda as persegue.

Elas correm, agora para dentro. Escondem-se atrás de uma porta de madeira, no que parece ser um lugar apertado. Tão apertado que inevitavelmente se encostam, frente a frente. O som dos passos de alguém lá fora, ou ainda, o som dos corações acelerados pelo medo. Sim, o medo. Novamente elas estão ofegantes e respiram juntas. Mas além do medo, o olhar escolhe o olho da outra. O gesto escolhido é o de dar as mãos e se acolher. Respiração e presença; A partir daí, tudo foge do tempo, do espaço apertado, tudo se expande. Como a sensualidade costuma fazer. É interessante pensar nessa construção de erótico. O gesto, a escolha, o toque. As mãos se encontram primeiro e tudo depois é consequência e se esse não é um ponto de vista lesbo-erótico, ou de um erotismo sapatão, eu não sei o que é.

Agora mais spoiler:

E aí o que acontece depois é que elas viram água. Elas viram água. Elas inundam tudo, a casa, a cidade. A água é um elemento geralmente relacionado no senso comum com fragilidade, sensibilidade, “características femininas”, entende? Só que como bem diz Fela Kuti a água não tem inimigo, mas não é só porque ela sabe se moldar (isso é uma estratégia), mas também porque não existe inimigo pro que é abundante e forte como a água nesse mundo. Em narrativas antigas, Iorubás e de outros povos originários, as mulheres, mães ancestrais como Oxum e Iemanjá com frequência se transformam em água e provocam inundações, ou ainda secam toda a água do mundo, como estratégia de luta e resistência. E aí que esse filme me pegou. Me deixou molhada mesmo, se não for informação demais. Toda a narrativa é guiada pelos gestos dessas mulheres, corpas negras em situação de resistência e fuga, e seus desejos. Desejar lutar, gritar, pintar, desejar a outra. Esse é o filme de maior potência erótica que eu já assisti, e é justamente pelo sentido expandido de erotismo e sensualidade que ela traz, não sei se de propósito, mas foi o que reverberou aqui. Sem nenhum diálogo, em cerca de doze minutos, quatorze, com os créditos. Nosso poder de desejar e materializar o desejo é nossa força motriz de vida. Esse filme traz muitos gatilhos de vida. Me dá saudade, me dá vontade, me lembra que sou viva. Através de gestos e três elementos muito simples. Respiração. Presença. Água.

“A felicidade delas” está atualmente em cartaz no Festival de Curtas de Dresden na Alemanha. Para mais informações e para acompanhar as próximas exibições, siga as redes de Carol Rodrigues e do filme: no instagram são @carolrodriguescinema e @afelicidadedelas.

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