VIAGEM AO SUBCONSCIENTE
Por: Lígia Franco
Com frequência me percebo num lugar de tentar tirar uma interpretação de tudo, uma narrativa que possa dar conta de explicar a cada segmento de imagem e som aquilo que vejo e ouço, na busca de tirar algum tipo de aprendizado, de explicação dali, ou até mesmo atrelando toda essa interpretação às coisas que estão rondando pela minha mente no momento em que me vejo diante de uma obra artística. Faz parte da psique humana narrativizar os acontecimentos numa tentativa de explicá-los. Contar histórias é o que nos fez chegar até aqui enquanto sociedades humanas.
E essa é uma das coisas mais incríveis que uma obra, de certa forma experimental e abstrata, que está muito mais para o subjetivo do que para um campo racionalista, pode nos proporcionar. É claro que as e os artistas que compuseram em suas diversas camadas aquela obra, tinham em mente um objetivo. Mas o curioso é perceber esse impacto que a arte tem no encontro: entre o que vem das e dos artistas que a criaram, o que aquela arte de fato é, e o que eu, enquanto espectadora, consigo traduzir. São meandros que se cruzam e se transformam, deixam de ser e voltam a ser. Se eu fosse compor uma imagem para tentar explicar isso, seriam aquelas imagens sobrepostas, meio transparentes, meio opacas, que às vezes a gente não sabe onde começa uma e onde termina a outra e que logo mudam completamente suas formas, exibindo cores, texturas, tamanhos completamente diferentes. Imagens vivas em movimento. São exatamente as imagens que vejo nessa performance sonora-visual “Ressonâncias” criada pelos grupos CMC e Sonora: músicas e feminismos, realizada no Festival CHIII de 2021.
Uma janela entre as folhagens me indica a porta de entrada para um universo completamente surrealista e onírico. Ao adentrar na obra que se inicia tímida, me vejo como num sonho onde nada é o que parece e tudo pode ser alguma coisa. Lembro de Maya Deren em “Meshes of the Afternoon” (1943), em que uma sombra caminha por um jardim, pedaços de um corpo que não sabemos de quem é aparecem, enquanto o som vai se anunciando com elementos que lembram sinos, num tom de mistério, um misto de alerta e curiosidade, nos instigando em querer saber o que virá. Outras camadas sonoras vão se unindo criando tensão com os sons agudos e estridentes. Sobreposições, a vagarosidade com que os movimentos da imagem acontecem dialogam também com a vagarosidade do som, como se ambos tivessem sido esticados nesse espaço-tempo surreal. Há um movimento de proximidade, vemos imagens de muito perto, de tão perto que se tornam desfocadas, uma matéria amorfa na luz e sombra, contrastes que conforme a câmera se movimenta, conforme o próprio objeto se movimenta, parecem se tornar outra coisa, como quando vemos a garganta que produz o som escutado, de repente estou vendo naquela mesma imagem não mais uma garganta, mas um tronco de árvore, uma paisagem. Estou entre dois mundos.
Nesse universo fantástico, os objetos que produzem os sons muitas vezes aparecem na imagem. Eu sei que o que estou ouvindo vem do deslizar do dedo sobre a boca de uma taça. Ou pelo menos é o que acredito ser. Uma crença que não se sustenta por muito tempo, as distorções que as ondas sonoras sofrem, logo me fazem também abandonar essas pequenas sensações de me agarrar às certezas e lembro mais uma vez que estou num sonho. Tem coisa ali que eu não faço ideia do que seja, mas me causam sensações. É como se eu estivesse explorando o subconsciente da minha mente e todas as sinuosidades que ela tem.
Ao contrário da imagem, o som por mais que vá sofrendo suas transformações parece ser um guia desta viagem por ter uma característica mais constante. Vozes, piano, sinos, chiados, ruídos, algo que parece um gato miando vão se alternando no processo. Nas imagens texturas, contrastes, luz, sombra, saturação, imagens estáticas, imagens em movimento, lentas, negativas. Como se memórias fossem todas jogadas numa caixa e sacudidas. É o que sinto ao ver a composição num todo. Minha única opção parece permitir que me conduzam, uma inquietação chega até mim. Quero que acabe, quero entender, quero a compreensão. Mas é justamente sobre saber lidar com essa coisa do inesperado, do imprevisível, de estar tão próximo de algo que parece com a mente subjetiva. Sobre a coexistência de todos esses sons, imagens e interpretações ao mesmo tempo. Sou transportada, me vejo observando uma imagem do “real” e ouvindo uma voz com palavras num áudio, as distorções estão presentes mas parece ser o mais perto que se chega à “vida como a conhecemos”. Uma dimensão paralela que a todo instante se decompõe em grafismos e chiados. Vejo figuras humanas, parecem ser os alquimistas empenhados em produzir esse universo onírico, como se nessa viagem tudo isso fosse um grande experimento e agora, depois de ter atravessado diferentes dimensões, eu conseguisse enxergar a realidade por trás do véu da ilusão. Será que eu sou parte de um experimento?
Em “Ressonâncias” elementos aquáticos aparecem a todo momento. A água que jorra de uma cachoeira, a chuva que cai lá fora, água na taça, chaves dentro d’água, pés na água, pingos de água pela tela, a sonoridade da chuva… Imagem e som que trazem umidade, são as águas que nos movem, que nos permitem navegar nesse deslocamento entre dimensões e então imergir na profundidade de nós mesmas, onde nada é o que parece ser. Nem mesmo um instrumento como o trompete, que produz um som conhecido, cumpre seu “papel” nesse universo onírico. Me sinto intimamente ligada, como se a viagem que eu fiz realmente tivesse acontecido na minha mente, olho para os pés na imagem, parecem ser os meus pés na água. O som volta a ser algo de um ruído ambiente, será que eu acordei? E lá está ela a janela, o portal. Percebo o impacto da viagem ao subconsciente e me questiono sobre como se dá a coexistência de todos esses lugares dentro de mim: o real, o abstrato, o subjetivo, o objetivo; todos banhados pelas águas fluindo no encontro com a obra artística. Estamos acordadas ou essa realidade é um sonho, experimento dos Alquimistas do Universo?
A vídeo-performance está disponível no Youtube:
O curta “Meshes of the Afternoon” de Maya Deren está disponível no Youtube: