“Vander” em frente e verso

Viu&Review
4 min readNov 5, 2020

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Por Lina Cirino

Peço licença, Bárbara Carmo, para escrever sobre esse filme-ensaio catártico. Quero dizer, anti-catártico, pra quem assiste, ela mesmo alerta: não tem final feliz. Na contramão da apropriação que Hollywood fez com a catarse de Aristóteles. Como disse Gilberto Gil um dia: procure saber. Catártico é para Bárbara, talvez, por ter tido a coragem de enfrentar, por meio da imagem e do som, vários fantasmas de uma infância atroz. Cutuca-os até purgá-los. Retomo a pergunta do último texto que escrevi aqui: o que pode o cinema?

Aristóteles, na Poética, argumenta que é por meio da tragédia que é possível a kátharsis. A tragédia busca nos porões empoeirados da alma dois sentimentos intensos e indissociáveis da catarse: o temor e a piedade. Na trilha aristotélica, a catarse possibilita a restauração, como se tivesse encontrado a cura ou a purificação. Freud, que não é besta nem nada, leu a Poética e operou a catarse primeiro a partir da hipnose, junto com Breuer: é revivendo ou trazendo à consciência traumas que gostariam de permanecer no porão do esquecimento, que é possível liberar essas reminiscências.

Mas narrar (não só hipnotizar) é um excelente recurso para trazer à consciência fragmentos do inconsciente — daquilo que nos obrigamos a esquecer para continuar a viver. Freud foi “descobrir” isso mais tarde, com o divã. Narrar experiências traumáticas possibilita organizar imageticamente a própria existência. O divã é uma possibilidade. Outra é o cinema. E aqui, corte seco para Vander.

O filme de Bárbara trabalha muito bem uma dualidade super potente: simplicidade e complexidade. A linguagem visual do filme é muito simples: sete planos que mostram a frente e o verso de duas carteiras de identidade. Primeiro a do seu pai. Vander. Depois a sua, ao lado da do seu pai. A complexidade está no áudio desse ensaio. Melhor dizendo: nos discursos incutidos neste áudio visceral… no que catamos das reminiscências e dos rastros dessa narrativa mosaica dos primeiros anos de Bárbara.

Nos dois primeiros planos, Bárbara apresenta o protagonista dessas memórias: “ Este é o meu pai. Para as pessoas literais, essa é a foto do meu pai. Para mim, é a foto do meu pai como eu vim a conhecer. Meu pai se chamava Vander. Meu pai falava três línguas. Meu pai nunca acabou o ensino médio. Meu pai nasceu com a língua presa e fez cirurgia para soltá-la. Meu pai foi uma criança gaga e não falou até os seis anos de idade. Meu pai aprendeu a ler sozinho e a escrever também. Meu pai fez parte do movimento Hare Krishna depois que fugiu de casa.”

Conforme o filme avança, Bárbara narra, por meio de rastros e fragmentos, traumas de uma infância truculenta, enquanto aproxima a câmera da foto 3x4 da identidade de Vander. Eu não sou de dar spoiler, vou usar palavras-chave: Alcoolismo; Abandono; Câncer; Morte; Racismo estrutural. Vou escrever um parágrafo só sobre esta última: racismo estrutural.

Vander foi preso porque esqueceu o documento de identidade em casa. O documento. Porque a Identidade, tá na cara. Tá na cor. Não há no Código Penal Brasileiro nenhum dispositivo que preveja como tipo penal andar por aí sem documento. O crime se chama abuso de autoridade: agente ou servidor público que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído (Lei nº 13.869, de 5 de Setembro de 2019). O outro crime, ainda mais grave, se chama racismo: praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Tá lá no art. 20 da Lei que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor (Lei Nº 7.716, de 5 de Janeiro de 1989). Você já viu branco sendo preso por não portar documento?

Voltando para Vander, não me aguentei, perguntei à Barbara: você tem alguma foto com seu pai? Logo depois que vi Eu, minha mãe e Wallace (Irmãos Carvalho, 2018). É muito potente ver os dois filmes em sequência: viabiliza fabular perguntas e respostas inquietantes, diga-se de passagem. Refletir sobre elementos residuais (indícios) possibilita confrontar políticas de esquecimento, apagamento. Bárbara me respondeu: “Isso foi outra coisa do filme, minha mãe insistiu que tinha fotos dele e a gente encontrou duas ou três. Mas nenhuma minha com ele”.

Barbara Carmo constrói essa foto, dezenove anos depois da morte do seu pai: coloca seu documento ao lado do documento de Vander para procurar semelhanças entre essas Identidades. Eu vi, Bárbara, nos olhos, no cabelo, na boca, à medida em que te escuto. Não deixei de notar semelhanças também nas assinaturas: você assina a identidade e seu filme como Bárbara do Carmo, o sobrenome paterno. Resgate, assimilação, enfrentamento, purgação, liberação, renovação. Bárbara, você é a mesma, depois desse filme?

O filme foi exibido no Encontro de Cinema Negro Zozimo Bulbul, 2020.

O filme está na programação do Reconcitec 2020: https://ufrb.edu.br/ppgci/reconcitec2020

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