The Midnight Gospel
Por Lina Cirino
Um aviso, antes.
Acredito que cada pessoa tem repertórios únicos. Suas bagagens constituem seu modo de ver e viver o mundo. Quando vemos um filme, série ou vídeo, associamos nossas memórias e contextos sócio-culturais — nossas subjetividades — para construir sentidos às imagens e sons que passeiam pela tela. O produto audiovisual seria, então, um entre-lugar capaz de conectar o mundo do autor e o mundo do espectador. A Obra, na esteira de Umberto Eco, é aberta, e cria possibilidades de interpretações. Não existe certo e errado na forma como apreendemos e percebemos estéticas e sentidos. Dito isto, vou tecer algumas considerações sobre como The Midinight Gospel me impactou (independentemente das intenções de Pendleton Ward — o seu criador). E você,leitor, fique livre para criar suas próprias percepções e construções de sentidos sobre a série.
Eu assisti The Midnight Gospel, na Netflix, no final de abril deste ano distópico — mesma semana de lançamento da série nessa plataforma streaming. Fui bombardeada de sensações, as quais não terei tempo e linhas de descrevê-las, mas fica aqui uma sinopse [dessas sensações].
As cores e formas impressionam. Parece que a paleta de cores foi importada de um Mundo Lisérgico: elas são muito alegres, vivas, vibram, brilham! E as formas são completamente ousadas, beirando à não-linguagem, não-coisa, não-forma. Mas isso só fui percebendo aos poucos… à medida que a proposta da série foi se apresentando a mim.
No começo, ainda no primeiro episódio, achei muito difícil acompanhar a série. Não sabia do que se tratava, não li nem a sinopse. Eu gostei das cores e cliquei. Os primeiros planos indicavam uma aventura narrativa que meu reportório imediatamente associou à Rick and Morty, mas com uma estética menos americanizada. Isso porque Clancy Gilroy, o protagonista da série, lembra um indiano-mago, que mora numa espécie de trailer, cujo principal móvel é um computador-simulador-de-universos e uma máquina que é tipo um teletransporte num formato de vagina. Sua casa-trailer é num mundo repleto de formas que destoam de nosso repertório de humanos. Não é no nosso planeta. Mas nossa mente insiste em fazer associações para criar sentidos nas coisas que vemos.
A sua profissão (digamos assim) é entrevistar seres em planetas que estão morrendo. Essa espécie de video-podcast (espaçocast) é lançada em seu canal, no espaço. Ele escolhe, através do seu computador-simulador, um planeta que está prestes a ser destruído e visita-o para colher uma entrevista com um de seus habitantes (suas últimas palavras, diga-se de passagem).
Ocorre que essas entrevistas de fato aconteceram, no nosso mundo. São podcasts do Family Hour, um programa de rádio americano, cujo apresentador é Duncan Trussell — o dublador de Clancy Gilroy. Algumas entrevistas foram escolhidas por Pendleton Ward e posteriormente editadas, de modo a caber em vinte minutos, mais ou menos (o tempo de cada episódio). Trata-se de um fic-doc que brinca com metalinguagem.
Como eu ia falando no primeiro episódio ainda no começo achei muito difícil de acompanhar Os diálogos são rápidos como num formato podcast as cenas contém muitos planos que também são rápidos e cheios de informação Eu tinha que focar bastante para entrar no fluxo dessa amálgama imagem e som aparentemente destoantes operando em plena velocidade num mesmo presente.
Assim como na meditação: é muito difícil concentrar-se no agora. Aceitar e acolher os pensamentos na velocidade que eles aparecem, prestar atenção neles, nas mensagens contidas no fluxo, para depois desapegar e tentar o contrário: não pensar em nada e prestar atenção nas sensações do próprio corpo, no agora.
Não à toa, a meditação é um tema presente em todos os episódios. Desde o primeiro, quando acompanhamos a conversa sobre drogas entre Clancy e o presidente daquele planeta prestes a morrer. No meio do episódio, o conceito de meditar é introduzido por Clancy, enquanto vemos uma vacina contra-zumbi sendo fabricada dentro de um shopping, prometendo uma cura.
A morte também é um conceito presente em todos os episódios. Não apenas nos discursos, mas também nas escolhas simbólicas contidas narrativa. Clancy visita planetas que estão morrendo. E todos os personagens que ele entrevista, de alguma forma, morrem no final. Ele experimenta várias quase-mortes. E através do som emitido por uma espécie de berrante que guarda em sua bolsa, é sempre salvo pelo seu terceiro olho, que o transporta de volta para casa. Na tradição hinduísta, o terceiro olho representa o sexto chacra, responsável pela capacidade de intuição e percepção extra-sensorial.
Notei, também, que Clancy leva de cada planeta sapatos que acompanharam suas vivências. Quando viajamos, geralmente trazemos algo que representa, de alguma forma, o lugar que visitamos, como souvenirs. No decorrer dos episódios, Clancy encontra sapatos que calça para caminhar a sua breve trajetória naquele planeta moribundo. Ele traz consigo, para casa, um símbolo de sua caminhada, do seu percurso. Sapatos. Um tipo de memória simbólica dos seus diversos passos, e guarda-os numa estante, como troféus.
Voltando aqui ao percurso narrativo da unidade da série, o segundo episódio é mais difícil ainda de acompanhar. Percebi que o computador de Clancy cria para ele diversas formas e aparências, como roupas ou capas de sua essência. Mais um indício de preocupação da série com formas. E esse segundo episódio, na minha opinião, é um dos mais ousados nesse assunto. Isso porque, na maior parte do tempo, acompanhamos um diálogo entre amorfos. Isso mesmo. Gosmas, tipo slime, em constante movimento conversando sobre Jesus, meditação, morte, depressão, criação. Eu comecei a abstrair as imagens e prestar atenção apenas na conversa: e uma outra perspectiva me foi acrescentada à série.
À medida em que os episódios avançam, imagem e diálogo ficam mais sincronizados. Os conceitos de meditação, morte e espiritualidade são cada vez mais aprofundados. As conversas ficam ainda mais complexas, ao passo que as imagens abrandam distorções. Percebi, junto com Clancy, que tudo estava conectado. A proposta de Pendleton Ward ficava cada vez mais nítida para mim (pelo menos, foi assim que interpretei sua intenção): se o tema recorrente da narrativa (não necessariamente o principal) é a meditação, o formato da série tenta expressar as sensações (e dificuldades) desse ato. Primeiro é muito difícil acompanhar o ritmo. Quando achamos que estamos conseguindo, nossa mente nos dá uma rasteira e apresenta formas diferentes e inimagináveis de nos distrair. Mas se insistirmos… se aceitamos e embarcamos junto, os ritmos confluem… e conseguimos nos conectar com o agora: mente e corpo.
Parece papo de Hareboo vegano, mas não sou Hareboo, nem vegana (nada contra). No entanto, sou demasiadamente ansiosa. Meu pensamento é muito rápido. Enquanto escrevo esse parágrafo aqui, já to pensando na frase que vou finalizar essa conversa e, ao mesmo tempo, na receita que vou fazer nestante no almoço. É uma loucura conviver com minha mente. E meditar ajuda bastante a lidar com isso. Eu tento com frequência. E quando consigo… é surreal. Bate onda.
Por fim, o último episódio é muito especial. A entrevistada é com Deneen Fendig, a mãe de Duncan Trussel, terapeuta clínica e pós graduada em psicologia. Ela faleceu alguma semanas depois que a entrevista foi ao ar, em Hour Family. Deneen tinha câncer de mama e já ouviu de médicos mais de doze vezes que tinha menos de seis meses de vida. O episódio é muito bonito. É sobre amor — a experiência mais avassaladora, capaz de destruir nosso próprio ego (psicanaliticamente falando). “Por que abrir o coração dói?” é uma das perguntas que Clancy faz para Deneen. As perguntas são mais intimistas e as imagens também. Ciclos da vida passam pela tela, enquanto ursinhos carinhosos (médicos, cuidadores, artistas, pintores) circundam Clancy e Deneen e curam pacientes através do afeto, no caminho por onde passam. É o episódio mais fácil de acompanhar — em termos de sincronicidade entre imagem e diálogo — e, ao mesmo tempo, o mais difícil: eu chorei algumas vezes. Pausei. Respirei. Voltei.
The Midnight Gospel é um dos melhores desenhos que já vi na vida. Não tem nada a ver com Rick and Morty — é, inclusive, muito melhor. Quando terminei a série fiquei em modo de suspensão, meio anestesiada, tentando processar o tanto de informação de saber e sentir que o desenho me proporcionou. É, sem dúvidas, uma experiência estética (e aqui me refiro ao conceito de John Dewey — procure saber). Eu esqueci a frase de impacto que tinha pensado mais cedo. Tô com fome.