Ritual e performance na viagem pelo interior

Viu&Review
4 min readFeb 24, 2021

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Por: Lígia Franco

Imagens de um ritual à beira do fogo passam diante de nós, porém os cortes abruptamente nos retiram da imersão. Ainda não é o momento. No ritual — na vida — paciência é fundamental. Se você não estiver preparada como vai absorver o aprendizado? São pequenas pistas, quase que subjetivas do processo de imersão em si mesma, que o curta “Minha Deusa e Eu”, (2020) documentário performático da diretora Gabrela Vieira, insere: imagens de uma mulher negra, adornada com pinturas em seu corpo, escrevendo palavras — que não sabemos quais são — e arremessando-as em direção ao fogo. Intenção, transmutação e o som de sino. O trabalho e o curta se iniciam.

Uma reza abençoe e abre os caminhos. O gole da Ayahuasca, medicina indígena sagrada. E então, aos poucos, mergulhamos. Mãos postas, rostos serenos, a música conduzindo ao encontro com a medicina. Num estado de espírito elevado, onde a conexão com o interno e o externo é mais forte e perceptível, junto com Gabrela, diretora e personagem, podemos observar um registro orgânico do rito pelo qual ela e outras pessoas presentes ali, atravessam e comungam.

As imagens mostram a força que delicadamente começa a tomar o espaço e as pessoas. O toque do atabaque anuncia a dança ao redor do fogo, chocalhos nas mãos e pés que batem no chão. O ritual tem algo de performático, e a performance se torna ritual na medida em que as pessoas se permitem adentrar o estado profundo de conexão, que é fora do contexto comum. A música, é um fator fundamental ao contribuir na condução que o curta se propõe a fazer para dentro da viagem de autoconhecimento.

Na próxima sequência, não somente a música, mas também a narração que ecoa com as imagens dos movimentos corporais de Gabrela, fazem a condução. Num quarto ornamentado com folhas, de iluminação roxeada, imagens do sagrado são intercaladas: o ciclo lunar, artes, velas, plantas, chocalhos, cosmologia xamânica e afro-brasileira presentes no encontro da mulher com a Deusa que habita seu interior. É através da montagem que se busca trazer ao visível as metamorfoses que esse encontro realiza, são cortes rápidos, blocos de cores, imagens em negativo, sobreposições, espelhamentos, fades, efeitos de câmera rápida e lenta…

Minha Deusa e eu

Um sopro de rapé nos leva para o exterior. O ar na fumaça dos cachimbos, o fogo que dança e aquece, as águas que correm pela cachoeira e a terra, apoio e base de onde saímos e para onde voltamos. Elementos presentes no rito e nas performances dos corpos feminino e masculino adornados com pinturas e com presentes da floresta. São performances que se envolvem nessa sinergia de corpo, mente e espírito com o sagrado. Mais uma vez a montagem se incumbe de materializar na imagem aquilo que extrapola da percepção não atenta. E aí entra também a nossa imaginação interpretativa do que cada efeito de montagem pode ser: o tempo se dilata e se contrai, trabalha em looping, indo e voltando nas linhas cronológicas, que deixam cronologias de lado. Efeitos de dissociação de corpos poderiam ser uma tentativa de fazer ver a aura dos personagens dançando e buscando a conexão com a natureza. O negativo é a energia que flui por todo o corpo e que vai para a terra. Cortes que se reenquadram a todo instante são as diferentes dimensões que se cruzam no presente.

O conjunto de elementos nos conduz ao êxtase e faz nosso corpo espectatorial arrepiar. Sentimos a energia transpassar das telas. A energia daquele momento presente é transmutada, imortalizada e reinterpretada através do curta chegando até nós. Tudo é sensorial. O som e o gesto trazem a textura do toque. A delicadeza de cada movimento corporal é sincronizada com a música e com a natureza ao redor. Existe muita beleza em fazer essa interpretação do mergulho em si mesma de forma coletiva, através da realização de um filme.

“Minha Deusa e Eu” não se propõe a explicar ou racionalizar o porquê desse encontro ou como ele ocorre. O curta é o próprio encontro, é o momento em que se dá, o presente aqui e agora. Registro material, histórico desse encontro, e expressão artística, imaginativa, interpretativa que advém dele. Nos chama também para um encontro nosso, com a deusa que nos habita.

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