Receita de Caranguejo: O afeto do ato de cozinhar
Por: Luan Santos
A cozinha não é somente o lugar de se fazer refeições, mas um lugar de encontros familiares que se juntam em afeto para partilhar momentos. Para a maioria das famílias pretas do brasil, assim como a minha, devido o espaço reduzido da casa, a cozinha é o lugar das interações, das conversas cotidianas adocicadas com bolos, do cheiro de café da avó, da comida de mainha, de partilhar as refeições e o compartilhar carinhos. Cozinhar junto com quem se ama é como um abraço, uma dança sincronizada onde a colaboração, a presença e a afetividade se entrelaçam na feitura de uma comida que logo vai ser apreciada em uma experiência conjunta. “Receita de Caranguejo”, dirigido por Issis Valenzuela, traz o ato de cozinhar como uma forma de comunicação afetiva entre uma mãe e uma filha que atravessam os silêncios e a perda do pai da família.
Em uma abertura que se utiliza de imagens retiradas de um programa televisivo, duas baleias jubartes, uma mãe e sua filha, nadam e cantam a solidão na imensidão do mar. Esse momento inicial funciona como um signo, uma metáfora sobre o estado dos personagens, assim como
articula imagens de uma reportagem na criação do que seria uma imagem-síntese da trama. Assistindo essas imagens das baleias jubartes em sua TV em casa, Lari (Thais Melo) se prepara para ir à praia com sua mãe (Preta Ferreira) passar alguns dias na casa da família que não vão à algum tempo, após a morte do pai. Lari é uma adolescente que enfrenta transformações distintas em sua vida: a ausência de seu pai e o ínicio de sua menstruação. Vagando por desconhecidas e novas experiências, Lari fica constantemente em silêncio, fechada em si. Apesar das inúmeras tentativas de conversas e interações iniciadas por sua Mãe, Lari continua a mexer no celular ou a ouvir música. Em espaços pequenos como o carro em que elas viajam ou a grandeza da praia, mãe e filha parecem distantes e o enquadramento faz questão de evidenciar isso com a Lari aparecendo em primeiro plano enquanto sua mãe está ao fundo, afastada.
A narrativa constrói nas sutilezas dos gestos manifestações sentimentais de personagens que não verbalizam seus sentimentos. Na casa de praia, uma roupa antiga no cabide do guarda-roupa, um chinelo deixado na parte de fora da casa e um óculos escuro suscitam momentos de dor e afeto, onde cada personagem lida de uma forma com a ausência. A mãe cheira a roupa de seu marido, enquanto a filha usa o óculos escuro de seu pai na praia. Apesar de ser um filme que se inicia a partir da morte, a narrativa busca formas sutis e sensíveis de mostrar a saudade dos personagens, assim como uma relação abalada onde a não-comunicação cria barreiras invisíveis. É reconfortante em ver o quanto que a Mãe respeita o espaço da adolescente e tenta, pacientemente, encontrar jeitos de conversar e se aproximar. O elemento transformador dessa relação distante é o caranguejo. Interessada em animais marinhos, Lari observa os caranguejos
na praia com atenção. Sua mãe compra caranguejos para cozinhar no jantar, compartilhando uma receita que ela adora, criando memórias afetivas através da comida e buscando formas de superar a dor da ausência com a presença do afeto.
As rupturas fabulares da narrativa mais tradicional deslocam o espectador com imagens luminosas de animais marinhos. Os caranguejos que Lari observa vão se transformando em seres luminosos captados de forma abstrata e com uma beleza lisérgica. Tais rupturas potencializam os signos mobilizados pelo filme, fabulando sobre a iluminação pessoal de Lari e sua própria transformação. A fotografia assinada por Nunna Nunes (“Sem Asas” 2019) captura o cotidiano revelando sua beleza nas sutilezas. O som assinado por Isadora Torres e Vinicius Prado é uma das — tantas — virtuosidades do filme, dando o tom da atmosfera da narrativa, salientando os silêncios e transitando entre o natural e o surreal. A montagem se articula entre as continuidades de ações e as rupturas manifestadas pelos animais luminosos. Os enquadramentos estáticos que evidenciam a distância dos corpos das personagens no espaço, dá lugar à proximidade entre mãe e filha na cozinha. Enquanto preparam os caranguejos, Lari se permite se aproximar de sua mãe e a interação entre elas se torna mais carinhosa. Logo após um corte no dedo sofrido por Lari, o cuidado de sua mãe a acolhe e juntas se confortam num abraço apertado transbordando afetividade e compreensão. O afeto e o cuidado às confortam da dor física e psicológica.
A cena que os caranguejos são cozidos é de uma perturbação progressiva intensificada ao máximo pelo som, gerando um desconforto através de um plano demasiadamente longo. Contrapondo ao plano anterior, Lari e sua mãe compartilham não só a comida, mas uma experiência afetuosa que rompe as barreiras dos silêncios e as afasta da ausência para suscitar a presença, da cara fechada para os sorrisos. Em um plano final deslumbrante, o mar se ilumina com seres luminosos assim como Lari, afastando a escuridão de si.
Memórias afetivas com comidas são difíceis de esquecer, reverberando em nós como um lugar de relaxamento onde sempre podemos recorrer em momentos difíceis. Em “Receita de Caranguejo” uma relação marcada pelo distanciamento entre mãe e filha se ameniza e deságua em um momento afetivo proporcionado por uma comida especial, afinal cozinhar junto com quem se ama é um ato de amar.
Link para assistir ao filme: https://innsaei.tv/#/detalhes/95845c06-d532-497f-9a31-6fed482c7840
Texto crítico desenvolvido como parte da Oficina de Crítica Negra ministrada por Kênia Freitas em relação com as atividades do 13º Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul: Brasil, África, Caribe e outras Diásporas.