“Rafiki”, numa cápsula do tempo para 2008

Viu&Review
7 min readSep 25, 2020

Por Hanna Vasconcelos

“I saw things I imagined”/ eu vi coisas que imaginei.
- Solange Knowles

A quarentena tem trazido muitas memórias em sua maré. A primeira, foi a lembrança desse filme que eu já queria ver tinha tanto tempo, e com ele veio outra. Já faz 12 anos que eu tive 15 anos. Na verdade não parece tanto tempo assim, mas eu vivi pelo menos duas vidas desde então. Ainda lembro da sensação de esconder uma das grandes paixões que vivi, sentar atrás dela na aula e colecionar atrás dos meus olhos todos os momentos que passamos sozinhas. Vale dizer que o ano era 2008, uma verdadeira renascença viada (Lady Gaga lançou “Just Dance” e Katy Perry gostou de beijar uma garota), agraciada pela puberdade de jovens nascides sob a regência de um Saturno em Aquário, ou seja, eu sabia o que estava acontecendo comigo, mas só queria “dançar pra passar”. Além disso, as histórias de terror dos que apanhavam dos pais, eram expulsos de casa ou eram “apenas” violentamente rejeitados pela família e por todos do convívio. Então, eu tava lá de mãos dadas com algum amigo que no momento quisesse me beijar ou me chamar de namorada, mas passando bilhete pra ela. E mesmo convencida que eu amava eles, e por mais divertido que fosse ficar com eles, eu não podia deixar de imaginar nós duas ali, mesmo que eu nem soubesse como imaginar nada disso. Era tipo observar as palavras voando e povoando minha mente, sem conseguir formulá-las em frases que fizessem sentido. Mas esse texto é sobre um filme.

“Rafiki” é o segundo longa-metragem da diretora Wanuri Kahiu, produzido no Quênia e lançado em 2018, conta a história do romance entre Makena (Kena) e Ziki, duas adolescentes que se envolvem romanticamente num país onde a penalidade por ser abertamente homossexual (ou ser acusado de) pode chegar até 14 anos de prisão. Ziki e Kena se conhecem sob um contexto de rivalidade familiar no qual seus pais competem nas eleições locais por uma vaga na assembléia legislativa, e a partir de um pequeno conflito começam a se conhecer e se aproximar. O nome do filme, “Rafiki” significa amizade em suaíli, que indica logo de início de onde parte e onde se esconde o romance proibido, passando por uma longa fase de “chove não molha” que só quem é, já viveu e alcançou aquele beijo, sabe. O primeiro beijo das duas acontece numa festa, num espaço escondido, atrás de uma cortina de pano.
Sim, “Rafiki” é um filme água com açúcar, cheio de mel, clichê romântico, flare quando elas se tocam, cenas longas de olhares apaixonados, muito daquele silêncio que precede o beijo e um mundo de gente maldosa tentando separá-las. É também um filme vibrante que nos ensina muito sobre percursos possíveis para falar de silenciamento, moralismo, dor e violência sem sucumbir, sem (necessariamente) cortar nossa carne novamente. Para isso, a diretora usa de um recurso estilístico-político que denomina Afrobubblegum (goma de mascar Africana) que é pensar numa obra que possa mostrar pelo menos duas pessoas africanas saudáveis, economicamente estáveis, sem necessidade de salvação e aproveitando a vida (ao menos duas dessas três questões).

Tem muito chiclete em “Rafiki”, eu li por aí. Mas não me senta direito isso no estômago, sabe? As cores, os respiros, a kombi abandonada com vela aromática e flores para passar a primeira noite juntas.. é chiclete, mas também é um filme que te pega pela mão e te leva lá de volta no romance adolescente, mesmo que você não queira, através das cores, das músicas, da distância dos olhares e da intensidade das relações. A montagem que foge da transparência bem ali nos momentos em que Kena e Ziki experimentam a leveza do início da paixão (mas talvez seja mesmo minha vênus em peixes) em seus passeios juntas, onde voam bem alto, riem bem frouxo e vivem, sem se preocupar e sendo em certa medida até displicentes com a realidade moralista que se encontram. Em contraste, o filme acompanha de forma mais próxima o cotidiano de Kena, com cenas cercadas pela moral fundamentalista cristã de sua comunidade, suas responsabilidades familiares diante de um contexto emocionalmente dilacerado entre seus pais, e o peso da suas relações com os amigos homens e héteros.

“Eu queria que isso fosse real”, dito por Ziki, é tudo o que não queremos escutar, mas também não conseguimos deixar de ver. Assim, o filme dá a ver uma face de ser jovem e LGBTQI+, nesse caso, de ser uma mulher que ama mulheres, que é justamente esse engodo do ser quem você realmente é se permitir sentir o que se sente, e tentar se encaixar num espaço que o resto do mundo delimita para você. O ato final do filme inicia na cena em que Ziki e Makena são violentadas na rua, após terem sua relação exposta, é coberta por uma sombra, um véu que é invadido pelos sons da violência e da gritaria. Esse recurso é ao mesmo tempo interessante no lugar de não dar a ver, não espetacularizar a homofobia e ainda assim, agonizante ao passo que não sabemos o que realmente acontece com elas. Nesse instante a montagem também alonga nossa sensação de tempo, as coisas parecem acontecer em loop e sem ordem cronológica específica. Ziki e Kena são separadas e penalizadas individualmente por um amor que nutriram juntas. Na cena da delegacia a distância imposta entre as duas começa a se dilatar e o medo de ser socialmente rejeitada se torna muito mais complexo, porque o Estado interfere diretamente no querer dessas corpas e na maneira como elas são tratadas. Sentadas lado a lado, mas afastadas. Divididas também pela reação de dois pais que tem visões opostas de tudo o que aconteceu.
A partir daí, o filme começa a desenhar caminhos de independência e estratégias de sobrevivência para que essas mulheres que se amam vivam suas verdades. Enquanto Makena está sendo rezada diante de toda sua comunidade, pelo pastor na igreja que frequenta, ela olha fixamente a imagem de sua mãe chorando e rezando, nos braços da amiga. Kena é uma mulher silenciosa (silenciada?) e isso acompanha a personagem durante todo seu percurso no filme, mas nessa cena, sua imobilidade e silêncio são muito marcantes e seu olhar atravessa o ruído, a pregação, o discurso. Essa cena é uma introdução interessante do desfecho do complexo contexto familiar de Kena, a medida que evidencia o sofrimento de uma mãe moralista, reclusa, religiosa, fechada, porém muito próxima e de um pai compreensivo, político, porém distante na maior parte do tempo, dinâmica delicada que é muito ressaltada e agravada a partir deste conflito. O acolhimento do pai de Kena é um alívio ao passo que sufocamos ali com sua mãe, que se cala em desespero enquanto Kena fecha a porta sem vê-la. O que ela diria? O que ela poderia dizer?

O caminho de Makena e Ziki em direção à uma independência sem homens e aos seus próprios sonhos talvez fosse um filme menos chiclete, mais adulto. Mas eu queria mesmo é que a gente tivesse tido Kena e Ziki em 2008. No fim do filme, numa tarde magenta, elas se reencontram. E só. Elas existem e se reencontram, o olhar de Kena permanece o mesmo. Doce, apaixonada. Acho que para mim, aos 17 anos talvez isso fosse suficiente. Eu só queria mesmo um filme que me comunicasse com um olhar paciente e resiliente que corta através da gritaria e da pregação, que mesmo que tudo ao redor indicasse o contrário, eu não estava quebrada. E sei também que lá havia (e há) existências e corpas que precisavam saber disso muito mais do que eu. Dito isso, talvez esse filme não seja mesmo pra você, eu li por aí que mesmo com o impacto que fez em Cannes lá em 2018, ele não passaria de um filme água com açúcar e cheio de falhas. Para mim, mulher que ama mulheres, que assistiu muitos e muitos filmes que falam da minha existência unicamente pelo viés da dor, da maldição, do tabu, do corpo branco e passivo, me permito discordar. Esse filme para mim é um encontro. Não apenas o encontro entre as duas protagonistas, mas esse encontro entre Kena e o menino que semanas antes havia também apanhado por ser gay em Slopes, onde vivem. Esse encontro, apontado durante todo o filme como possibilidade, acontece num momento que Kena está totalmente isolada e desestabilizada. Essa cena é um bom exemplo de como a diretora Wanuri Kahiu escolhe modular a dor e beleza: sentados no fundo da kombi que é o espaço-templo de Kena e Ziki, os dois dividem um longo momento de silêncio e cumplicidade apenas pela presença dos corpos. Essa imagem foi precisamente a imagem que me levou de volta de maneira mais forte à adolescência: o silêncio cúmplice de dois adolescentes LGBTQI+ que não podem dizer nada do que são um para o outro. Ainda assim, se eu pudesse imaginar essa cena lá atrás, talvez eu não soubesse como. Essa é a potência de “Rafiki”: a possibilidade de dar a ver coisas que muitos jovens apenas imaginam, quando se permitem, quando não podem evitar.

Sign up to discover human stories that deepen your understanding of the world.

Free

Distraction-free reading. No ads.

Organize your knowledge with lists and highlights.

Tell your story. Find your audience.

Membership

Read member-only stories

Support writers you read most

Earn money for your writing

Listen to audio narrations

Read offline with the Medium app

Viu&Review
Viu&Review

Written by Viu&Review

Indique, leia ,acompanhe e compartilhe sobre suas séries e filmes favoritos! Um texto novo a cada semana!

No responses yet

Write a response