Quilombo mata cavalo: corpo-negro-território também é arma
Por: Lina Cirino
O imaginário coletivo sobre povos quilombolas perpassa relações de colonialidade: desde o período de colonização, o colonizador justificou sua opressão nas diferenças biológicas e fenotípicas para instituir a idéia de raça que anestesiou o capitalismo colonial. Os dispositivos coloniais alimentaram a descrença quanto à autenticidade da condição étnica de povos negros desconsiderando seus processos históricos e redes de memória de constituição de suas formas de vida, e desdenhou seus direitos e reivindicações políticas, descreditando suas condições enquanto agentes políticos de seu próprio destino.
O cinema de luta geralmente é composto de uma narrativa que surge do corpo-a-corpo do autor (realizador), um aparelho de filmar (câmera ou celular) e o contexto que o contorna. Situações, histórias e personagens já existentes no mundo “real” são enquadradas e posteriormente montadas, a partir das escolhas do realizador. Nesta linha de raciocínio, o realizador tem o domínio do discurso que será articulado na narrativa fílmica. E, cada vez mais cientes deste “poder”, alguns sujeitos quilombolas pleiteiam o saber das múltiplas ferramentas que compõem o cinema e o vídeo. Assim, eles podem ser “autores” de seus documentários, e não “objetos de narrativas”.
Jurandir Amaral — quilombola residente no Quilombo Mata Cavalo — leva ao espectador, a um só tempo, representação e representatividade, sob abordagens do cinema direto e do cinema engajado. É o diretor de um projeto de cinema de luta implicado em diversas facetas: produção de memória e acervo, meio de prova em eventual processo jurídico, mobilização de redes de solidariedade, denúncias, registro do cotidiano.
As primeiras cenas são regadas de cotidianidade: ao som de pássaros e grilos, vemos folhas, bananais, milho sendo descascado sob o canto de Ana Maria Silva: arroz deu cacho e o feijão já floreou, milho na palha, coração cheio de amor. Em seguida, acompanhamos o depoimento de Natalino da Silva, um dos entrevistados do Quilombo Mata Cavalo: “nós nascemo e criemo na lavoura, em roça. Antigamente não existia máquina, nem nada, era só foice, enxada e machado”.
Entre os depoimentos dos entrevistados, imagens do cotidiano são salpicadas: planos da mata, da estrada, de rituais de Umbanda, de costumes ainda preservados de seu modo de vida; antes de sermos apresentados ao xis da questão: retomada e demarcação territorial.
O Quilombo Mata Cavalo está localizado no Município Nossa Senhora do Livramento, em Mato Grosso. O território abriga cerca de 400 famílias dispersas em 6 diferentes comunidades/associações. Aurília da Silva explica o enredo: o seu bisavô, Graciano Tavares da Silva, ex-escravo, comprou um pedaço de terra e deixou para os seus “vindouros”. Antônia Silvana complementa: com o fim da escravidão, os escravos não tinham pra onde ir, ninguém tinha terra, então a “Sinhá” deles vendeu uma parte da terra pra Graciano e doou o resto para os demais escravos.
Uma espécie de legenda indica para o espectador o primeiro ponto de virada desta narrativa: “Entre as décadas de 40 e 50, a maioria dos remanescentes negros foi expulsa ou fugiu de Mata Cavalo temendo a represália dos grileiros” que começaram a cercar e vender as terras do Quilombo. O segundo ponto de virada também é apresentado por meio da mesma ferramenta: “Em 1996 se inicia um movimento de retorno. Muitas famílias voltaram à Mata Cavalo para lutar pela retomada da posse da terra.” Os fazendeiros, previsíveis como são, não aceitaram a retomada e articularam seu network: policiais e soldados.
No embate, a polícia perguntou:
“Cadê a arma que vocês têm?”
Ao que prontamente dona Antônia Silvana respondeu:
“Que arma?! A arma que a gente tem é o nosso corpo.”.
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Agora durma com a precisão de uma resposta dessa.
O curta sustenta a narrativa por meio da oralidade, outra arma das comunidades quilombolas, que de certa forma, perpassa pelo corpo. Os entrevistados continuam narrando os caminhos burocráticos — cartório, INCRA, desapropriação — do longo processo de demarcação territorial para tentar acabar com este abalroamento e fincar os pés na terra de uma vez. Retomada que abarca não só o seu território, mas também suas religiões, suas festas, suas músicas, suas danças, seus modos de ensinar, plantar, colher, existir.
Quilombo Mata Cavalo é uma artimanha de contra-narrativa. As imagens do cinema e do vídeo de luta permeiam discussões em diversos espaços públicos, o que leva a necessidade de compreender a conexão entre cinema, visibilidade e luta. É fundamental atentar sobre as relações entre o cinema e as transformações sociais — materiais ou simbólicas — porque imagens, enquanto registro de um “antes” que se torna “depois”, podem ser dispositivos de “construção” de memória coletiva. Muitos documentários feitos em (e não por) comunidades quilombolas carecem de representatividade ou distorcem os discursos pretendidos por seus indivíduos, o que influencia na forma como são vistos e, consequentemente, serão lembrados (ou esquecidos).