[MIMB2020] Pattaki: A poética de (re)invenções de mundo

Viu&Review
4 min readOct 3, 2020

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Por Luan Santos

Som de mar surge em meio aos créditos iniciais se antecipando a própria imagem. Peixes lutam para sobreviver, se debatendo, em um entre-lugar entre o mar e a praia. O plano de abertura de “Pattaki” (2018) de Everlane Moraes é uma daquelas imagens tão poderosas que são capazes de sintetizar um filme inteiro. As águas, os peixes, o habitar em dois mundos, tudo contido em uma única imagem em movimento que vai se desdobrar e se complexificar no decorrer do filme. A Cuba capturada e fabulada por Everlane está distante das
representações do cinema estadunidense, assim como distante de um “realismo” que condiciona esses corpos negros limitando suas experiências subjetivas. As distorções que o filme opera, seja pela lente, pelo reflexo das poças nas ruas que mostra uma Cuba etérea, pela projeção das águas que transfigura os rostos dos habitantes ou pela máscara, são composições
fantásticas de uma poética de existências complexas e a realização de novos mundos possíveis, vendo e inventando a partir do cotidiano.

O habitar em mundos que coexistem a partir de suas particularidades como a água e a terra, a escassez e abundância, o real e o sonho, a fantasmagoria e a presença, são elementos fundamentais do filme que habita entre a ficção e o documental, se transfigurando, inventando e fabulando sobre as experiências dos moradores da ilha. Cinco cubanos — Lazara Isis, Amparo Molina, Alexander Quiala, Rodolfo Ofarril e Mauria Herrera — em uma noite de lua cheia são hipnotizados e cuidados pela rainha do mar, Yemanjá. Os personagens -partindo da ídeia de que ao ligar uma câmera todos são personagens, inclusive de si mesmos — também habitam mundos que se atravessam, são humanos e peixes, assim como são os filhos de Yemanjá que no idioma Iorubá significa “mãe cujos filhos são como peixes”. A mais velha cega que anda livremente no escuro de sua casa como um peixe que por viver nas profundezas escuras do mar já conhece sua extensão, o pedreiro sempre coberto por uma poeira branca no rosto como um peixe que por ficar perto demais da superfície da água sempre precisa se hidratar, a mulher trans que transcende a própria existência humana e se transfigura em híbrida com cabeça de peixe — uma sereia — , são todes peixes-fora-d’água em seu próprio território. O filme tensiona a realidade para refletir a subjetividade da vivência desses personagens nesse território, repleto de contradições. Cercados constantemente pelas águas, seja no mar ou nas poças que se formam no chão, os personagens sempre estão em busca de água. A desigualdade social e o racismo opera nas contradições entre abundância (para alguns) e escassez. As contradições de viver numa ilha e não ter água em casa, não ter peixes na mesa. Águas que libertam e que aprisionam.

As artes visuais, em especial a pintura, é um elemento importantíssimo para o cinema de Everlane Moraes, que possui uma linguagem e forma de compor as imagens mergulhada em uma poética potente e bem identificáveis de seu estilo cinematográfico. Utilizando como referência a obra “Mulher-Peixe” de René Magritte, assim como as obras da artista afrocubana Belkis Ayón, “Pattaki” é um deleite visual perfeitamente composto e capturado por Flávio Rebouças, onde cada frame é uma pintura. A luz prateada contorna e preenche os corpos negros dos personagens, como uma lua cheia que lança luz na escuridão da noite através de planos que contemplam a ação performática dos habitantes com calma, deixando que os olhos dos espectadores perambulem por toda superfície da imagem. A atmosfera etérea potencializada pelo som assinado por Vitor Coroa é intensa e instigante, alavancando nossas sensações ao máximo. A complexidade de criação de mundos em “Pattaki” se dá pelo uso potencializador de sua forma fílmica e a poética de seu conteúdo. Reforçando o poder metafórico da água, a narrativa se estabelece como um filme-coral, onde os elementos simbólicos são colocados e distribuídos criando diversas camadas de profundidade e complexidade, verdadeiras cosmopoéticas do cotidiano.

“Pattaki” é um filme arrebatador, desconcertante, que nos captura e nos transporta para uma fábula da realidade afrocubana, marcada por contradições e paradoxos que atravessam os corpos e a subjetividade de seus moradores. Que as águas da “Rainha do Mar” lavem as aflições desses corpos e os preencha com alívios poéticos.

Link para assistir ao filme na MIMB 2020:
https://www.videocamp.com/pt/campaigns/mostra-mimb3-pattaki/player?special_id=112052
https://www.instagram.com/oficialmimb/

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