O corpo encruzamento
Encruza vem do verbo encruzar. O mesmo que: passa, transpõe, atravessa, cruza. [Figurado] Atravessar. Significado de Encruzamento: Ato ou efeito de encruzar. Lugar onde algumas coisas se cruzam. Etimologia (origem da palavra encruzamento). Encruzar + mento.1
Primeiramente peço licença aos que vieram antes, aqui nesta escrita ao Zózimo Bulbul pelo rasgo, peço licença também a Yasmin Thayná, pela (re)conexão, e a Juan Rodrigues por encruzar, onde além disso peço licença para me utilizar dos “arcos”. Essas produções tencionam a (re)construção da(s) identidade(s), da subjetivação a partir da experiência afrodiaspórica. Utilizando cinematograficamente da experimentação, ficcionalização e da performance.
Apodero-me aqui como ponto de partida das palavras “liberdade”, “medo” e “tempo” presente nos filmes de Juan, para ser este fio condutor nos direcionando a refletir/questionar as perspectivas desses atravessamentos atemporais dos corpos e como essas (nossas) produções e dentro disto nossos corpos subvertem a lógica ocidental. Resgatando. (Re)criando, novas narrativas e possibilidades.
O filme Alma no Olho (1973), de Bulbul é um rasgo atemporal do corpo preto em cena por entremeio do atravessar o(s) trauma(s); Arco da Liberdade (2015), de Juan, tenciona “o que é liberdade?”. A dominação dos corpos é constante e este mesmo corpo é colocado a todo instante em trauma. Um corpo preto fabulando, criando e ficcionalizando é prospectar possibilidades. Um corpo possível que rompe, rasgando a imagem. Tal imagem criada e direcionada ao corpo preto, dentro da perspectiva e logica ocidental que conduz o corpo para uma estrutura de negação.
Intrinsecamente na estrutura lógica racista das imagens cinematográficas a subjetividade lhe é apagada/negada, logo a construção de imagens estereotipadas lhes aponta ao local de subalternizações e violências, por exemplo. Em Arco do Medo (2017) a violência está aí, está dado e marcado, colecionando, mas quem está disposto a morrer pela arte? Juan pergunta. No Arco do Tempo (2019) a liberdade e o medo são atravessados pelo tempo. O tempo corta esses outros corpos, penetra — liberdade rompendo com o medo, mesmo que esse medo esteja latente. KBELA (2015), de Yasmin Thayná pulsa a experiência, a subjetividade, a construção do — eu sou sujeito — que é colocado de outro lugar. Para Oliveira (2017).
(…)ser negra, a experiência. O cabelo. Os produtos. As sessões de tortura. Os fantasmas. As piadas. O prejuízo psicológico. Fanon e Bubul, mas também Coltrane e Carolina Maria de Jesus. O corpo, o jongo e o jogo. Como se joga o jogo? O ressentimento é noviço, nocivo, se volta para dentro, causando impotência, açoitando a imaginação. Mas a raiva… a raiva é cristalina, reluzente, criativa. “Kbela” exala uma raiva especial, calma, forte e afirmativa. O SIM transfigurado, o corpo, o corpo… Exterioriza-se sob a forma de uma AÇÃO.
Essas produções fílmicas são processos de cólera do trauma colonial, das estruturas, a raiva é ruptura a partir do corpo, do trauma. E essa raiva é nos leva a outro lugar, como cita OLIVEIRA (2017) logo acima “transfigurando o corpo”. Compreender o tempo não é linear, é entender um corpo preto encruzado pelo tempo, um corpo futuro-presente-passado. Um corpo afrofuturo, pulsante, tecnológico, ancestral, visionário. O corpo é história e ela tão pouco é linear. O passado — presente — futuro está a todo o instante atravessando os tempos. Rasgando-os. Existir enquanto ser afrodiaspórico encruza com estes traumas e com os traumas do presente que são resultantes deste processo violento.
Voltar as palavras “liberdade”,” medo” e “tempo” é entender como essas obras subvertem, partindo de que são pretos fabulando sobre si mesmo. Sendo o “si” ser “nós”. Processos pessoais-coletivos de narrar e ecoar outras histórias, vozes e imagens, a partir da história da negadas, de corpos negados. E, utilizar-se disto como força é potência, é voltar ao passo que é futuro, é presente. Arcos que cortam narrando sob outra perspectiva.
Referências
FREITAS, Kênia Cardoso Vilaça. Sankofa: Afrofuturismo, diáspora negra e temporalidade. Disponível: https://associado.socine.org.br/anais/2018/17292/kenia_cardoso_vilaca_de_frei tas/sankofa_afrofuturismo_diaspora_negra_e_temporalidade. Acessado em: 10/12/2019. FANON, Frantz. Pele Negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. OLIVEIRA, Bernardo. Luz, Raiva, Ação! KBELA. Disponível em: http://ficine.org/luz-raiva-acao-kbela/. Acessado em: 11/12/2019.
1 Disponível em: https://www.dicio.com.br/encruzamento/; https://www.dicio.com.br/encruza/. Acessado em: 06, Ago, 2020.