“Nafi’s Father”: Os conflitos pessoais de um homem coletivo

Viu&Review
8 min readApr 8, 2021

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Por: Luan Santos

Estar presente no Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul — Brasil, África, Caribe e outras diásporas, mesmo que no contexto online de isolamento, é receber um abraço apertado. Um abraço pelo espaço de acolhimento, um abraço pela curadoria, um abraço pela programação que pensa o ato de ver filmes como um evento compartilhado mesmo à distância, um abraço dado pelos filmes. Esse abraço de acolhimento, de trazer junto o espectador em contato com a realidade dos filmes é o que marca o filme de abertura do 13º Encontro.

Como um jovem negro que vive no Brasil, pouco sei sobre as tradições culturais, religiosas e familiares dos diversos países africanos, devido à colonização e as práticas de dominação branca que nos afastam — ou ao menos tentam — dos nossos irmãos e irmãs do continente. “Nafi’s Father” (“Baamum Nafi”, 2019), filme de abertura do Encontro e longa de estreia do diretor Mamadou Dia, traz-me como espectador ocidental para dentro das relações sociais — semelhantes ou distintas as que vivencio — de uma cidade do Senegal, com uma intimidade tremenda de uma narrativa que se destina, acredito eu, principalmente, aos Senegaleses e aos habitantes de África. O ato de abraçar é trazer junto e estar em relação com a corporeidade física e subjetiva de outras pessoas, entrar e estar em contato com suas experiências. A intimidade com que a narrativa do filme se desenvolve transborda pelas bordas das telas nos convidando a adentrar na experiência de seus moradores.

A narrativa de “Nafi’s Father” intercala com sensibilidade núcleos sociais singulares em rota de colisão. Família, religião e a cidade vão compondo as inúmeras camadas que o filme articula, suscitando personagens bem construídos e repletos de nuances que atravessam conflitos pessoais e coletivos. Partindo de uma questão familiar que se desenrola progressivamente até se pensar a invasão do fundamentalismo extremista islâmico na comunidade, criando um movimento de expansão que parte do pessoal ao coletivo, o filme inicia sua narrativa dramática quando Tierno (Alassane Sy) descobre que sua filha Nafi (Aïcha Talla) vai se casar com o filho de seu irmão mais velho Ousmane (Saïkou Lo). Tierno é um imã local — um líder espiritual do Islã no Senegal — que deseja impedir o casamento de sua filha por ter conflitos pessoais e religiosos com Ousmane, um homem que cada vez mais se aproxima de práticas extremistas do Islã que são contrárias ao que Tierno acredita e incentiva aos moradores da cidade. No primeiro momento que ambos aparecem na mesma cena, Ousmane e Tierno estão afastados fisicamente pelo espaço e pelos enquadramentos, ambos se olham e a materialidade dos conflitos entre os irmãos está contida nesses olhares.

A dualidade e a complexidade marcam as características dos personagens, com destaque para a atuação de Alassane Sy como Tierno e de Saïkou Lo como Ousmane, que estabelecem uma relação entre irmãos marcado pelos conflitos, pelas cicatrizes ainda abertas do passado e pelas visões diferentes de religião. Elhaj Ousmane, como o mesmo gosta de enfatizar, é um homem que teve a oportunidade de estudar formalmente no exterior, possui riquezas e uma vida mais confortável financeiramente que os outros moradores de Yonti. Com pensamentos conservadores e disciplinadores de subjetividades, Ousmane quer impor o extremismo islâmico que tem tomado os países e cidades da África em Yonti, com discursos progressistas e falsas promessas. Acreditando em uma prática religiosa menos tradicional como o uso opcional do Hijab para as mulheres, Tierno é um animista sensível e cuidadoso com a família, assim como com os moradores da cidade que ama. Mesmo com ideais menos conservadores, Tierno não escuta os desejos de Nafi e oprime seus sonhos, assim como não considera suas escolhas. Ao intercalar os momentos sensíveis de Tierno com suas ações opressivas, evitando o maniqueísmo de estabelecer personagens intrinsecamente bons ou maus, a narrativa suscita complexidades de encenações em uma cadeia de conflitos que se desenrolam.

No meio do conflito entre irmãos, Nafi é uma jovem confiante que não abaixa a cabeça diante das tentativas de controle dos homens, sempre se colocando de forma combativa e certa de suas vontades. Seu sonho é fazer faculdade de Neurociências na cidade de Dakar, capital do Senegal. Nafi planeja casar com seu primo Tokara para que ambos possam sair de Yonti e conseguir uma vida com mais liberdade, longe do controle de seus pais. Tokara é um rapaz sensível, que gosta de dançar e que obedece o pai sem questionar. A relação dos dois é repleta de cuidado e afeto, manifestado nos toques, abraços e olhares. Nos momentos em que passam juntos, Tierno e Tokara se mostram bem parecidos em suas personalidades, ambos compartilham tanto da sensibilidade quanto da impotência de se colocarem para o mundo e contra as ações violentas que começam acontecer na cidade.

A forma como a narrativa se desenvolve através de planos que constroem pequenas ações que oferecem nuances para os personagens e movem a trama salienta uma direção cinematográfica consciente, que mobiliza nas sutilezas dos gestos possibilidades narrativas. A trama é muito bem construída pelo roteiro, com a sensação crescente de tensão movendo os rumos dos personagens a um fim trágico, evidenciando o crescente conservadorismo e extremismo que afeta os mulçumanos em África. Tierno é responsável pelas cerimônias da comunidade e está dividido entre a função de pai e a de “Tierno” — que não é um nome próprio, mas uma função religiosa. Tierno parece não reconhecer a própria individualidade, por ser, desde jovem, controlado pelo pai para ser um líder religioso. Em contraste com o irmão que constantemente reivindica seu primeiro nome em forma de afirmar sua individualidade — e, de certa forma, deixar a família em segundo plano — Tierno aparentemente esqueceu o seu nome em busca de uma jornada de pensar e cuidar da coletividade. Extremamente doente, Tierno esconde a gravidade da doença de sua família para que possa cuidar de todos. Entre os conflitos pessoais e coletivos, Tierno precisa se colocar contra o extremismo religioso trazido por Ousmane e Munzir, filho do Sheik Amir que vai chegar na cidade para tomar o controle.

Os planos que mostram a cidade e os moradores vivendo suas vidas com felicidade, com crianças brincando nas ruas e as pessoas vivendo livres são belíssimos, sensivelmente captados como um alívio, um respiro à tensão crescente da narrativa e evidenciam a beleza comunitária da cidade — até que as violências disciplinadoras reconfiguram esse território. Após a chegada dos fundamentalistas religiosos na cidade, é imposto um estado de policiamento e controle de corpos. A cooptação de jovens para serem transformados em terroristas acontece e a cidade se transforma em um campo de opressão sistemática. A narrativa cria contrapontos a partir das imagens que intensificam a percepção sobre o estado de controle violento. De ruas cheias de pessoas se relacionando à ruas desertas escuramente assombrosas; do caminhar livre à constante revista invasiva; da criança brincando à criança transformada em soldado, moldado pela disciplina militar. O extremismo religioso/político e as forças opressivas que atravessam o mundo contemporâneo — não só pelos fundamentalistas islâmicos, mas também pela crescente ascensão política da extrema direita — é mostrada em “Nafi’s Father” não como uma violência imediata, mas um processo contínuo de manipulação social e de instauração de um poder doutrinário sobre os corpos e mentes. As pistas estão todas lá para a comunidade ver, mas não é assim tão simples enxergar as ramificações contínuas do conservadorismo.

A forma como a montagem — assinada por Alan Wu — se articula construindo a narrativa por vezes com a contemplação, deixando os personagens respirarem no plano, mas em outros momentos cortando abruptamente no fim dos diálogos, o que dá um ritmo extremamente satisfatório para o filme e possibilita sensações diversas para espectadores e espectadoras. Os momentos de descontração são seguidos por tensões, criando contrastes no tom da narrativa, mas sem perder a seriedade do tema. Os corpos retintos envoltos em roupas super coloridas são capturados por uma câmera quase sempre estável que observa os personagens de perto, realçando a proximidade e a intimidade presentes no filme. Os planos que observam o cotidiano (fotografado por Sheldon Chau) dos personagens, assim como da cidade, é regado de uma luz natural e uma pele preta que brilha feito pedra preciosa. Os momentos desviantes, onde a câmera se estremece e perambula, acontecem quando Tierno está mais instável, seja pela manifestação de sua doença quanto pela notícia surpresa de que Nafi iria casar com Tokara.

A jornada de Tierno para impedir os avanços do extremismo islâmico na cidade se torna cada vez mais intensa, com rupturas mais densas em suas relações familiares. Abalado pelas investidas de Ousmane, sua doença fatídica, os moradores que lhe viram as costas, Tierno defende sua visão de mundo com afinco, mas também com receio de se colocar diante dos conflitos. A distinção entre a prática religiosa do Islã no Senegal, praticada por Tierno — menos tradicional e que pensa mais nas liberdades individuais — e o fundamentalismo extremista trazido para cidade por Ousmane em associação com Sheik Amir é evidenciada pelo filme constantemente. Essa distinção se sobressai na cena da Mesquita, em que Tierno confronta Munzir com determinação. Devido ao estado pavoroso que a cidade se encontra, o pai de Nafi sugere a realização de uma prática que contraria seus fundamentos e que é extrema em seu modo de vida. Mas afinal como combater o conservadorismo sem ações desviantes? O sexo antes do casamento é um gesto desviante diante da constituição moral da religião islâmica, sendo Nafi e Tokara obrigados a se casar e ao Sheik Amir desistir de seu plano de tomar a cidade em seus domínios. Ao elaborar o plano para que o rapto (como é chamado) aconteça, Tierno suprime seu conservadorismo para que a filha possa realizar seus desejos, assim como para impedir o avanço do extremismo religioso em Yonti. Em um clímax que explode em tensão com as mortes de Tokara, e, posteriormente, Ousmane, os extremistas se retiram da cidade, mas deixam vítimas de suas ações devastadoras.

É muito bonito quando Tierno percebe sua hipocrisia na forma como trata Nafi, expondo os defeitos e buscando, de alguma maneira, se redimir por seu comportamento. Nafi, carregando consigo a pulseira que simboliza seu amor e a relação de afeto com Tokara, deixa a cidade para fazer faculdade. Tierno não conta sobre sua doença e só se permite estar presente enquanto ainda é possível. A cidade aos poucos retorna à normalidade, exceto que o fruto subjetivo do extremismo é difícil de ser destruído.

“Nafi’s Father” é um filme com diversas camadas e nuances narrativas que se estruturam com maestria em um roteiro denso que se expande progressivamente. Uma narrativa sobre as complexidades das relações familiares, repleto de afetos e conflitos, ao mesmo tempo que mobiliza uma reflexão sobre as ações do conservadorismo e extremismo crescentes nos países Africanos — assim como no mundo todo, de certa forma -, evidenciando como práticas extremistas se infiltram e alteram as comunidades. Mas, acima de tudo, “Nafi’s Father” parece-me a jornada de um homem que renega a própria individualidade em prol da comunidade e de suas funções sociais, assim como defende uma prática menos tradicional do Islã se abrindo para o mundo contemporâneo.

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