[MIMB2020]“Fin”: A Fantasmagoria da experiência Afrodiaspórica
Por Luan Santos
A fantasmagoria da experiência negra que aflige os seres diaspóricos, deslocados de seu tempo e espaço pelo colonialismo, vêm habitando de forma expressiva as narrativas negras contemporâneas, muito mais como uma pergunta a se lançar do que fornecer respostas. A condição do ser diaspórico é a de um fantasma: silenciados, deslocados, fraturados e confinados em um não-lugar ou entre-lugares. É através dos entre-lugares que a diretora Moçambicana Lara Sousa constrói a narrativa de “Fin” (2018), um híbrido de documentário e ficção, um ensaístico filme sobre a sua própria condição de solidão e deslocamentos compartilhados.
O mar é um elemento central na narrativa de “Fin”, se (re)configurando em diversos símbolos e sensações que provocam a diretora/personagem, assim como o espectador. É em uma varanda imaginária sob o oceano Índico que a diretora reflete seu país de origem, os afetos com o pai Camilo de Sousa, a experiência de solidão e pertencimento em Cuba. O mar é tanto um mar de amar quanto de morrer. A varanda suspensa sob o mar pode ser lida como um território mental, um espaço de reflexão, isolamento e indagações, mas também um lugar para sensoriar os afetos. Uma das forças do filme é o compartilhamento das sensações de não-pertencimento que aflige os filhos da diáspora africana. Estudante da EICTV, escola de cinema de Cuba, Lara narra os seus deslocamentos de forma poética, crítica e com uma intimidade tremenda, reverberando em nós uma empatia de quem compartilha de tais experiências. Diante da possível morte de seu pai, um cineasta moçambicano importante nas lutas de independência de Moçambique, Lara procura por respostas ao silêncios de Camilo, assim como reflete sobre ações políticas ocorridas em seu país de origem. Diante de verdades incômodas sobre a luta política de Moçambique, Lara transita sob os lugares de utopia e distopia, afetos e mortes (simbólicas ou não), Cuba e Moçambique, ruínas físicas e mentais que a perturbam, afinal os deslocamentos provocam grandes dores. As reflexões e compartilhamentos de um homem desencantado com a própria revolução que ajudou a construir. Um país que pelas diversas formas de colonialismo do mundo branco, seja pelo capitalismo implacável ou pelas influências socialistas, se encontra fraturado, em ruínas. E uma filha que diante da possível partida de Camilo, precisa sobreviver sozinha a esse país em ruínas físicas e psicológicas.
A presença de Lara é suspensa de uma representação física, sua presença é evocada pela voz que guia a narrativa por espaços e tempos distintos. Lara, assim como um espírito, vagueia pelas ruínas, memórias e utopias fracassadas em busca de seu lugar. Em Cuba, apesar de um território desconhecido onde a barreira da língua provoca solidão, Lara se encontra de forma íntima com a cultura e os moradores do país, que segundo ela mesma “eram corpos, eram espíritos, não fantasmas”.
A fotografia assinada por Guillermo Argueta preenche os planos de uma poesia dura, repleta de ruínas e espaços fraturados pelas ações do tempo. Ao mesmo tempo que confere uma elevação onírica das paisagens, quase sempre vazias de corpos físicos exceto quando, articulando deslocamentos, os planos passam a ser internos, capturando as pessoas em suas casas em Cuba. A fotografia opera através dos silêncios e presenças contidas nas imagens. A montagem de Keyle J. Estrada é incrível, criando um ritmo contemplativo, que olha com atenção para imagens enquanto os sons preenchem e potencializam as lacunas dessas imagens. A montagem se articula por deslocamentos tanto temporais quanto espaciais, tensionando as imagens e vagando pelo espaço-tempo fílmico. Em certo momento a montagem interrompe a imagem de arquivo do discurso do revolucionário e primeiro presidente da República Popular de Moçambique, Samora Machel, com imagens contemporâneas do país. Da utopia do discurso histórico à distopia do presente. Da presença aos espaços vazios. O uso narrativo do som assinado por Maria Alejandra é potencializador das sensações e reflexões provocados pelo filme. De sons de mar, á batuques, aos silêncios e a narração, a construção sonora é repleta de nuances complexas que constrói uma narrativa sonora e sensorial arrebatadora. Os fantasmas da colonização que assombram com violências os sujeitos racializados, o fantasma de uma revolução que se transformou em um monstro, de um homem que olha para o passado e perambula refletindo os acontecimentos e uma mulher, desiludida com o país de origem, vagueando pelos territórios — físicos e psicológicos — como ser diaspórico. Com diversas camadas, “Fin” é ainda um profundo filme sobre a relação de Lara e Camilo, repleto de cuidados e compartilhamentos. É tocante ver o quanto de afeto existe na relação entre pai e filha, um amor tão profundo quanto as águas do Índico.
Diante da iminência de fins, seja a possível morte de seu pai, o fim de seu país enquanto utopia que um dia acreditou, como prosseguir além do fim? Lara se prepara para o início do “Fin”, mas assim como o filme opera em deslocamentos e dualidades, o fim pode projetar novos começos.
Link para assistir ao filme na programação da MIMB 2020 que acontece de 30/09 até 09/10: https://www.videocamp.com/pt/campaigns/mostra-mimb3-fin/player?special_id=118171
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