Memórias despertadas através do “Ícone” de Edson Bastos e Henrique Filho
Por: Giovane Alcantara
“[…] Histórias do saudoso Rio Novo são lembradas no Norte, exaltadas no Sul.
Salve os pioneiros que um dia chegaram e que plantaram os seus cacauais
dando a semente, do seu presente, que cresce mais e mais […]”
Trecho do Hino Municipal de Ipiaú.
Escrever esse texto é, certamente, estar atravessado por minha criação, lendas e histórias que eu escutava enquanto morei em Ipiaú, pano de fundo para o filme ‘Ícone’ lançado no YouTube no último dia 09 de abril, com direção de Edson Bastos e Henrique Filho. Esse texto é sobre as lembranças que o filme me trouxe, sobre as minhas lembranças de criança, sobre as lembranças do prédio que sobe aos céus na terra cortada pelo Rio de Contas. Eu não tenho o intuito de chegar a nenhuma conclusão, só de pensar nas reverberações que o filme me trouxe.
Ícone retrata o Prédio Santa Paula, que dos quatro cantos de Ipiaú pode ser visto. Ele seria a consagração do ápice do cacau, das benesses, da alta produção, do tanto de dinheiro que a cultura do cacau rendia. As ruínas do Santa Paula representam essa época. Essa época, e mais um montão de coisas. Ícone é inspirado na crônica de Victor Hugo Martins.
A narrativa do filme nos leva à implosão do ícone, localizado na principal praça da cidade, e entrecruza diálogos sobre o período de construção, sobre o que ele seria, sobre o que os ipiauenses acreditam que ele poderia vir a ser. Como os próprios diretores descrevem: o filme é um híbrido entre ficção e documentário.
Quando eu digo que escrever essa crítica é estar atravessado por minha criação e o local de onde venho, tento dizer que o Santa Paula — ou Maison Valle dos Rios — esteve presente no meu imaginário durante os 19 anos que vivi em Ipiaú e se faz presente toda vez que volto para a cidade que eu nasci e fui criado. É muito interessante perceber nas falas que aparecem, o quanto o Santa Paula é a representação de um imaginário comum. Para os seus proprietários a esperança de aplicação financeira bem sucedida frustrada pela chegada da vassoura-de-bruxa, para nós um elefante branco que nunca foi finalizado.
Estar atravessado por isso, é, todavia, pensar nas histórias que meus avós contavam sobre suas vidas nas fazendas de grandes cacauicultores, das histórias que eu escutei sobre como os empregados eram tratados, de como muitos coronéis, embebidos de sua vaidade, possuíam “um rei na barriga”. Não falo necessariamente sobre os donos dos apartamentos do Santa Paula. Longe disso. Digo, de maneira geral, que a produção de cacau esteve, durante muito tempo, ligada à ascensão de muitas famílias e ao declínio de muitas outras. É o ganhar e o perder, refletido aqui pelo início de uma verticalização da cidade, que já foi modelo. Já foi. Não é mais.
Eu sempre pensei que Ipiaú tem uma história riquíssima, cheia de lendas, de personalidades icônicas, de gente que morreu no esquecimento, de gente que aproveitava os luxos que o cacau proporcionava. Tenho vagas lembranças de quando estudava no Colégio Modelo e, em uma das atividades de nossa Feira de Ciências, tivemos que remontar, a partir de um documentário de Edson e Henrique, a história do cacau e da vassoura-de-bruxa. Não entendíamos nada de narrativa cinematográfica, roteiro, câmera, som, ação. Éramos movidos pelo desejo de ganhar os pontos que aquela atividade nos traria e subir algumas colocações no quadro de equipes. Não ganhamos. Mas guardo até hoje as histórias que aqueles senhores e senhoras nos contaram e a primeira experiência de estar próximo ao cinema.
Como muitos dizem no filme, é uma pena que o Santa Paula esteja daquela maneira, sem perspectivas do que poderia ser feito com os apartamentos de vista panorâmica e mais de 135 metros quadrados, com três quartos, garagem, dependências e tudo que se tem dentro de um apartamento. Não é por falta de vontade, pelo menos é o que se entende na fala de um dos donos. Vontade ele tem. De vender todos os 13 apartamentos adquiridos durante sua vida. Mas quem estaria disposto a investir no Santa Paula? Quem estaria disposto a deixá-lo pronto para a especulação imobiliária que tem voltado a toda pompa com a reativação da mineradora?
Quem estaria disposto. Quem estaria disposto. Quem estaria disposto? O trânsito histórico de Ipiaú nos leva a muitos lugares. Euclides Neto, seus escritos e jeito de governar. Ao declínio econômico com o fim do cacau. À ascensão econômica com a mineração. Ao crescimento desordenado que nos empurra, cada vez mais, a distantes bairros e faz surgir tantos outros subúrbios, a violência crescente, a desigual proporção. Reflexo de um Brasil escravocrata que tem sua história repetida inúmeras vezes. Reflexo de um período de solo fértil, de produção contínua, de monocultura que a poucos beneficiam.
O Santa Paula sempre serviu de cenário para muitos momentos em Ipiaú. A festa de São Roque, os shows de calouros, os parques de diversões, as competições de fanfarra onde todo mundo esperava ansiosamente pela BAMUC, importante pelos seus títulos e conquistas. Ícone, assim como muitos outros filmes de Edson Bastos e Henrique Filho, tem um ponto muito interessante: preservar a memória e a história daquele lugar que representa um tanto de coisa para Ipiaú e quem por ela é atravessado.
O filme “Ícone” está disponível em: