“Jorge” (2019) e a fabulação da realidade

Viu&Review
8 min readJul 23, 2020

Por Luan Santos

O audiovisual contemporâneo realizado por pessoas pretas no Brasil e no mundo é atravessado por uma aproximação das estéticas imagéticas, narrativas e discursivas que, apesar das linguagens e estilos diferentes de cada obra e realizador/a, se encontram e dialogam dentro da multiplicidade da experiência negra no mundo. Séries como Atlanta de Donald Glover, Random Acts Of Flyness de Terrence Nance e filmes como “Sorry To Bother You” de Boots Riley se articulam, a partir das suas próprias particularidades, dentro de um movimento estético e discursivo do Afrosurrealismo. O termo Afrosurrealismo é adotado a partir do “MANIFESTO AFRO-SURREAL: PRETO É O NOVO PRETO — UM MANIFESTO DO SÉCULO XXI” escrito D. Scot Miller em 2009, no qual o autor traça uma relação entre as obras de diversos artistas negros em épocas diferentes com o que seria uma estética discursiva e narrativa afrosurreal. Apesar do manifesto escrito por Miller ser de 2009, Amiri Baraka cunhou o termo Expressionismo Afro-Surreal, em 1974, para descrever a obra do escritor negro Henry Dumas em sua “habilidade de criar um mundo completamente diferente, organicamente conectado com o nosso… a estética negra em sua vivência, atual e contemporânea”¹. O Afrosurrealismo se diferencia do Afrofuturismo porque é sobre o presente. Enquanto o Afroturismo especula sobre as possibilidades de futuro da população negra, o Afrosurrealismo se articula através de um futuro-passado chamado de AGORA MESMO.

Personagens negros/as navegando pelo absurdo do racismo cotidiano em um mundo repleto de esquisitices é a maneira de lidar ficcionalmente com uma sociedade marcada pela violência policial e o genocídio negro. As narrativas realistas não dão conta da nossa realidade surreal.

“Ganja and Hess” (1973) Dir: Bill Gunn — Filme de terror afrosurrealista

Dito isto, não é a minha intenção rotular o curta-metragem “Jorge” (2019 ) dirigido por Jéferson , dentro desse movimento. O intuito é buscar uma aproximação entre diferentes obras que tratam da experiência subjetiva de indivíduos negros a partir de um olhar sobre o absurdo e traçar linhas de interpretação do filme a partir do diálogo com os princípios e estéticas do Afrosurrealismo.

“Jorge” (2019) Dir: Jéferson

Sinopse: Maré, hoje. Vermelhinho, cavalo criado pelo menino Jorge, foge do curral onde descansava. Na busca por seu cavalo, Jorge encontra a si mesmo.

Frame de “Jorge” (2019) Dir: Jéferson

Com uma premissa simples, “Jorge” cria uma narrativa fabulosa que fisga o espectador até o seu desfecho, fornecendo pistas pouco a pouco sobre seus signos e sentidos, deixando livres os caminhos de interpretação subjetiva que vão surgir após a experiência. Iniciando com um plano subjetivo que vislumbra o Cristo Redentor de longe, distanciando o filme das narrativas tradicionais que ocorrem no Rio de Janeiro, Jorge (Patrick Congo) deitado sob um banco com um olhar distante e perdido enquanto passos de um cavalo são mesclados com sons de ambientes urbanos. Jorge vai ao encontro de seu amigo Pedro (João Pedro) que está sentado em um sofá ao ar livre e cercado por cavalos que vivem naquele espaço. É interessante perceber que na primeira temporada de “Atlanta”, os protagonistas sentam em um sofá ao ar livre para conversar, se inserindo de forma cômoda em um espaço urbano que eles consideram tão próximos quanto a sua própria casa. Jorge desabafa com Pedro que não conseguiu dormir direito por causa dos tiros e da violência urbana no bairro. Jorge levanta e vai alimentar os cavalos. Rafa (Raphael Rodrigues) senta-se no sofá e conversa assuntos cotidianos com Pedro. Jorge não acha Vermelhinho e inicia sua jornada em busca do cavalo com a ajuda de seus amigos cavaleiros. A narrativa nos insere dentro do cotidiano desses personagens de forma orgânica, a partir do afeto desses corpos uns com os outros e os diálogos cotidianos. As cores do figurino dos personagens os ligam diretamente com os seus respectivos cavalos, criando uma sintonia entre humano-animal. Jorge veste as cores vermelho e branco, além do próprio signo de ser um cavaleiro em um cavalo branco. A associação do protagonista com a figura de São Jorge, seja por características da sua personalidade ou a metáfora com o cavalo, é um dos lugares que o filme transita, sem ser explicito em fazer essas relações. Pessoas negras têm que matar cotidianamente um dragão para sobreviver nesse mundo.

A direção de fotografia de Leonardo Harim “Feijão” observa com cuidado e beleza singela aqueles indivíduos transitando por espaços cotidianos. Os planos que destacam os cavalos aparecem na montagem como ligação direta entre cavaleiros e cavalos, personagens indissociáveis. Na crítica sagaz e surrealista contra capitalismo, escravidão moderna e tomada de consciência racial de “Sorry To Bother You”, o grande plano (aviso de spoiler) do vilão branco é transformar trabalhadores negros em espécies hibridas de homem-cavalo que possam trabalhar indefinidamente como escravizados. Boots Riley crítica toda uma sociedade embranquecida que vêem os cavalos, assim como os negros, como seres usados por eras como instrumento de trabalho, transporte e entretenimento humano. Em “Jorge”, humanos e cavalos coexistem em suas particularidades, com a presença dos cavalos sendo comum naqueles ambientes. O cavalo aparece na religião de Umbanda como uma forma de designar o médium responsável pela ligação entre o mundo espiritual e o mundano.

O som captado por Eduardo Falcão e o desenho conceituado pelo Luciano Dayrell guia a narrativa e reforça a relação dos cavaleiros e os cavalos, articulando os sons do trotar dos cavalos com o andar dos seus companheiros. A ambiência sonora articula diversos ruídos das ações que acontecem dentro e fora do plano, construindo uma unidade em que os sons se complementam formando uma espécie de “silencio sonoro”. Os ruídos não representam a cacofonia de um mundo corrido e barulhento, mas estabelece um repouso sonoro onde os personagens podem transitar em busca de respostas. A atmosfera sonora nos imerge na jornada de Jorge. Vale destacar a direção de arte assinada pela Cleissa Regina, que consegue criar uma composição que impulsione o filme e contribua com signos narrativos, adotando o minimalismo dos objetos encontrados na própria realidade das periferias como conceito.

Um dos aspectos mais interessantes de “Jorge” é criar uma narrativa que parece realista ao mesmo tempo em que utiliza de signos e metáforas que fabulam a existência dos indivíduos de forma extraordinária. Terri Francis, diretora do Black Film Center / Archive da Universidade de Indiana pontua: “Eu sempre pensei no afro-surrealismo como algo que não é selvagem nem louco”, diz ela. “É como “Random Acts Of Flyness” ou “Sorry To Bother You”, eles são extremamente reais. Eles são sobre momentos e o que está acontecendo no momento, e é essa revelação sobre uma realidade antes escondida ou menos conhecida que faz com que o trabalho tenha esse impacto”².

Frame de “Jorge” (2019) Dir: Jéferson

Percorrendo as ruas da Maré em busca de Vermelhinho, Jorge encontra com o mototáxi Digão (Rodrigo Maré) que lhe diz ter visto um cavalo na divisa. Logo após os jovens terem saído às pressas em busca de Vermelhinho, Digão recebe um vídeo em seu celular de um cavalo perambulando pelas ruas do bairro. A forma em que o filme capta atos cotidianos que são compartilhados por moradores de favela faz de sua experiência singular para os espectadores periféricos. A divisa, lugar mencionado pelos personagens como perigoso, é o destino final de Jorge. O nome “divisa” é bastante apropriado para o momento mais marcante do filme, onde o real e o fantástico se colidem e se misturam, tornando-se indissociáveis. Jorge avista algo em sua frente, desce do cavalo que divide com Rafa e anda lentamente como quem teme o que vai encontrar. Os sons de ruídos de um cavalo em agonia aumentam a tensão da cena sem revelar o que Jorge vê. Quando puxa o pano branco que cobre o corpo estirado no chão, a câmera revela o corpo de Jorge no chão. O silencio da morte invade a cena. Jorge olha para si mesmo sem vida. Vermelhinho e Jorge são personagens que se complementam, a morte de um é a morte do outro. A narrativa aborda, sem ser explicito, o genocídio do corpo negro periférico pela violência urbana motivada pelo racismo do Estado brasileiro. Jorge é vitima da violência urbana que atinge corpos negros diariamente. Em pé ao lado de Pedro e Rafa, Jorge observa a si mesmo enquanto a imagem vai se apagando até tornar-se um branco que preenche toda a tela.

A narrativa se reinicia e somos inseridos novamente no plano subjetivo vislumbrando o Cristo Redentor, dessa vez sem os sons do trotar dos cavalos. Em questões interpretativas, busco uma alternativa que não seja explicada pelo sonho, mas sim por escolhas estéticas e discursivas do diretor Jéferson. A narrativa se reinicia como se recusasse a ser finalizada com a morte de Jorge/Vermelhinho, se opondo as visões trágicas comumente adotadas em narrativas que se passam em favelas. O diretor nos oferece outra possibilidade de ver aqueles personagens. A fabulação da realidade aparece como forma de manter vivo os jovens negros. Já não é mais o bastante contar histórias da realidade periférica de forma “hiper-realista” a partir da violência e da pobreza, é preciso fabular sobre as existências periféricas em busca de novos finais que se inscrevam no agora.

Dessa vez sem precisar procurar por Vermelhinho, Jorge está feliz ao lado de seus amigos. Em um plano final lindíssimo, jovens negros andam a cavalo pelas ruas de seu bairro, ao lado de seus amigos com felicidade e leveza, e principalmente, vivos.

“Jorge” é uma experiência cinematográfica que insere a fabulação dentro da realidade como forma de existência subjetiva de indivíduos negros, compondo imagens e sons que dialogam intimamente com vivências periféricas dos espectadores.

“Jorge” está em circulação de festivais. Para ficar sabendo das futuras exibições do filme sigam o instagram @jorge_ofilme

Referências

¹“MANIFESTO AFRO-SURREAL: PRETO É O NOVO PRETO — UM MANIFESTO DO SÉCULO XXI” de D. Scot Miller — Traduzido por Yuri Costa https://medium.com/@_eusouyuri/manifesto-afro-surreal-preto-%C3%A9-o-novo-preto-um-manifesto-do-s%C3%A9culo-xxi-4b984c995b65

²Artigo escrito por Lanre Bakare para o The Guardian: “From Beyoncé to Sorry to Bother You: the new age of Afro-surrealism”

https://www.theguardian.com/tv-and-radio/2018/dec/06/afro-surrealism-black-artists-racist-society

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