“Indo…” e o lugar intermediário entre ficar e partir
Por Luan Santos
Mainha sempre falou que a única certeza que a gente tem na vida é a morte. Nunca soou como um pensamento pessimista, mas como conforto em olhar a morte como parte integrante da vida. Não estou banalizando a tragédia que é a morte, principalmente no momento delicado em que estamos vivendo, mas buscando olhar para esse fato além da própria tragédia. Parece-me que o cinema ocidental tem certa tendência em refletir sobre a morte sempre a partir do trágico, sem oferecer muitas variações em como se encarar a mortalidade. Os Replicantes de Blade Runner (Ridley Scott), de 1982, que se tornam cada vez mais humanos ao encarar a própria mortalidade em busca de se manter vivos, coloca a humanidade como ser destinado à tragédia eminente que acompanha a vida. Em como lidar com a morte, o cinema asiático tem um olhar menos melancólico e mais contemplativo, transbordando certa beleza em lidar com o fim da vida. Tio Boonme sabendo que sua hora de deixar o mundo físico chegou, reúne seus familiares para ajudar a trilhar sua ultima jornada. A morte em “Tio Boonme, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas” (Apichatpong Weerasethakul) não é um adeus definitivo, mas uma possibilidade de união e reencontro, a metafísica da narrativa reside em não delimitar as fronteiras entre o físico e o espiritual, pois ambos fazem parte da experiência humana. “Indo…” de Gabriel Andrade reside em um espaço único, unindo a tragédia e o absurdo da morte com um humor peculiar, o filme experimental parece olhar para o abismo, citado por Nietzcshe, e esboçar um sorriso irônico. “Indo…” se configura como um lugar entre ficar e partir, onde o absurdo da mortalidade se manifesta de diversas maneiras e o físico se torna indissociável do metafísico. Como diz Boonme em certo momento do filme “viver neste mundo não significa estar preso a este mundo”.
Antes de ir à crítica, pois contém spoilers, recomendo assistir ao filme no link que está no final do texto.
“Indo…” (2020) — BA — Dir: Gabriel Andrade
Sinopse: Um Slow Cinema com montagem de Video Clipe tragicômico de horror sobre lidar com a própria morte.
Mesclando gêneros audiovisuais, o filme vai variando em suas formas narrativas enquanto cria uma tensão sobre o por vir. A variação da forma potencializa o conteúdo discursivo e reflexivo da obra, além de criar uma unidade narrativa coesa que compõe um universo fílmico único. Guiado pelo tema da morte, “Indo” inicia com um olhar paciente no cotidiano do protagonista (Caíque Conceição), observando o que seria uma manhã normal em sua vida. Ambientado quase que em sua totalidade no interior de uma casa, os primeiros planos do filme observam a ação do tempo — ao mesmo tempo em que parece haver uma suspensão do mesmo — sob os objetos externos, enquanto os intercala com o protagonista preparando o café da manhã. Se nos planos externos as figuras no ambiente são imóveis, indissociáveis do ambiente que os cerca, nos planos internos um corpo se movimenta pelo quadro enquanto a câmera observa de perto os objetos que esse corpo interage. A música que inicia a sequência dá o tom inicial do filme, uma atmosfera descontraída e tranquila de uma manhã que se inicia. A música se relaciona com as imagens através uma linguagem de vídeo clipes, onde a narrativa intercala ações — ou a falta delas — contrastantes com certa ironia. Um zumbido de mosca perturba o protagonista, causando um desconforto da tranquilidade estabelecida. A atmosfera de tensão e terror domina a narrativa, como se o ruído nos forçasse, assim como ao protagonista, a encarar a realidade deixada de lado. O absurdo é revelado em um encontro de duplos, o corpo morto e o vivo, existindo simultaneamente como forma literal de se encarar a morte. Em diálogos interpretativos internos, me parece que a realização de ações cotidianas que a montagem expõe está relacionada ao desejo do próprio protagonista em usar o seu cotidiano como forma de encarar a mortalidade. A equipe de som que foi captado por Thainá Macedo e editado/mixado por Thiago Riedel usa a capacidade narrativa do som como potência do filme, evidenciando sonoramente a progressão absurda da narrativa e a jornada do protagonista. A partir do encontro consigo mesmo ensanguentado, o protagonista entra em um mundo de absurdos e fugas da realidade que se manifesta através da própria linguagem audiovisual como se estivéssemos — personagem e espectadores — compartilhando a mesma mente.
A direção de fotografia, assim como roteiro, direção, animação e montagem, foram realizadas pelo Gabriel Andrade, que consegue transpor todo o desequilíbrio progressivo do personagem com movimentos de câmera e uma luz artificial rosa, sendo simples e eficiente em narrar essa jornada pela psique do protagonista. O uso da animação em uma estética de rascunho lembra bastante em como os animes japoneses representam a dissociação e fuga da realidade. Em Evangelion (1995) de Hideki Ano, Shingi se vê preso em sua própria mente em uma fuga dissociativa em um momento em que precisava agir além da própria vontade. Tentado fugir da própria morte e da incapacidade de mudar o destino, o protagonista de “Indo” é engolido por uma escuridão rabiscada. Em uma busca de representar e transitar outros estágios da psique do protagonista, a linguagem da animação muda, como pensamentos que nos distraem do que é importante. O uso de um estilo de animação que lembra a rotoscopia, técnica que consiste em animar frames filmados, nos aproxima de uma experiência onírica e inconsciente, em que a “realidade” parece difícil de ser distinguida. O escape através de ações cotidianas é um dos mecanismos que a mente humana tem de procurar conforto em meio à experiência de morte, como pessoas que vêem — em suas mentes — momentos de suas vidas enquanto vivenciam a finitude da existência (ao menos desse mundo físico). A montagem interrompe a animação rapidamente com frames da “realidade” que se busca evitar, como lapsos de uma memória que não permite ser esquecida. Um cão que não aparece anteriormente divide a cena com o protagonista, como se fosse uma representação de Cérbero, o cão monstruoso de três cabeças que guarda a passagem para o mundo dos mortos na mitologia grega.
O sangue que marca o chão se faz presente interrompendo a animação e faz o protagonista encarar a morte. Entoando por uma canção que marca a aceitação da fatalidade, o protagonista toca piano tranquilamente como se realizasse uma homenagem a si mesmo. O absurdo da sequência está na própria forma em que o filme marca essa aceitação da morte pela música, que faz a ligação entre o mundo físico e metafísico, utilizando de um humor trágico que evidencia um olhar único em lidar com a experiência que o filme sensibiliza. A inserção de um personagem — interpretado por Gabriel Andrade — ensanguentado com um machucado na cabeça tocando violão em um dueto com o protagonista, me faz uma rápida ligação referencial com “Sorry To Bother You” (2018) de Boots Riley, ambos com uma forma absurda e um humor trágico em lidar com experiências dos personagens. “Indo…” nunca revela o motivo da morte do protagonista, mas isso não importa realmente, já que independente da forma como se morre, todos estão destinados a isso e o que nos resta é encarar nossa própria finitude.
“Indo…” mescla linguagens audiovisuais diversas para criar um mundo próprio em que a mortalidade não precisa ser melancólica, lançando outras formas de narrar o tema. Como o titulo nos situa, o protagonista está no processo de partir e encarar o próprio fim, desse modo, “Indo…” se configura como um lugar suspenso da realidade entre ficar — mesmo que não seja possível — e partir. Viver nesse mundo é absurdo, assim como o processo de deixá-lo.
Integrante da competitiva do Guarufantástico — Mostra de curtas fantásticos de Guarulhos, que esse ano acontece online, “Indo…” está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IBnxkW5Mshg&feature=youtu.be