“Ilhas de Calor”: A autonomia explosiva do protagonista

Viu&Review
7 min readJun 24, 2021

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Por: Luan Santos

Obras audiovisuais que tem o espaço escolar aliado às questões de identidade e sexualidade como forma e conteúdo narrativo tem se tornado cada vez mais regulares nos circuitos de cinema, tanto de uma forma que escape dos estereótipos e consiga estabelecer personagens complexos em tramas bem construídas, quanto de personagens caricatos e estereotipados em roteiros construídos para atingir um “determinado” tipo de público, visando o lucro com as pautas de representatividades. “Ilhas de Calor” curta-metragem do Alagoas e dirigido por Ulisses Arthur (“CorpoStyleDanceMachine”) aborda de perto os dilemas amorosos e sociais de estudantes, em sua maioria negros, para criar uma obra pulsante de um cinema negro cada vez mais múltiplo e inventivo.

Com uma liberdade juvenil que impulsiona a narrativa a partir de seus personagens em fase de amadurecimento, o espaço educacional se transfigura, mostrando a importância das instituições de ensino para florescimento das consciências críticas e percepções do mundo, apesar de também serem espaços disciplinadores e violentos para muitos sujeitos. Em um Brasil cada vez mais conservador que busca acabar com a educação pública, é corajoso ver o quanto “Ilhas de Calor” consegue elaborar uma narrativa focada nas relações afetivas e explorar as identidades efervescentes de estudantes no território escolar de uma escola pública do interior do Alagoas com tanta virtuosidade, mostrando a escola como espaço complexo de pulsações criativas e florescimento de uma juventude, assim como também expõe as violências físicas e veladas que acontecem nesse ambiente.

Frame de “Ilhas de Calor” (2019). Em cena Fabrício interpretado por (Vyctoria Tenóryo / Vitor Santos).

“Ilhas de Calor” articula as experiências escolares de estudantes com problemas sociais de gênero e sexualidade, criando uma obra efervescente pela forma como cria suas nuances dramáticas e personagens cativantes. Fabrício (Vyctoria Tenóryo / Vitor Santos) como uma ilha de calor, implode as barreiras da imagem e da transparência para construir sua própria narrativa.

Sinopse:
Na escola, Fabrício anda com as meninas e com elas cria um grupo de rap onde entoam rimas provocadoras para os meninos. Ele está apaixonado e guarda esse segredo só pra si, mas logo logo o muro invisível da paixão vai se estilhaçar.

“Ilhas de calor” inicia-se com a voz-off de um personagem chamando por Fabrício enquanto ruídos de falas e sons se proliferam ao fundo. É a vez de Fabrício ler o poema escrito para a aula, que o mesmo intitulou de “Decepção”. Entoando palavras de amor com uma certa aspereza, mágoa amorosa que se irradia no gesto da fala e contamina as expressões faciais, Fabrício enxerga sua relação intensa com outro colega de sala como um espaço intransponível e sufocante. Sendo interrompido pelos colegas de quem só ouvimos risadas e ruídos, a narrativa se manifesta através de uma não linearidade (flashfoward) que é construída com destreza dramática de uma direção hábil. A trama então retorna para os dias que antecederam a leitura do poema, contextualizando os motivos e caminhos que pavimentaram a escrita dessa carta de (des)amor.

O conceito presente no título incendeia a narrativa fílmica, trazendo o calor em diversos elementos e nos próprios personagens. Construindo suas camadas com minúcia, a obra transmite o calor a partir das interações no ambiente escolar, permeado por disputas entre meninos e meninas, sendo os meninos perturbadores dessas colegas, de um modo tanto fabulativo (vassouras se transformam em espadas de duelo) quanto do contato direto entre esses corpos em desenvolvimento e descobertas da sexualidade. Fabrício entra em disputa com sua paixão não confessa, onde a violência das ações e reações se engendram numa luta/dança corpórea em puro fervor, só interrompida com a presença de outro colega de classe, que evidencia a distância desses corpos que emanam um calor próprio, mas também uma tensão amorosa conjunta — renegada pelo colega de Fabrício. A presença de Fabrício em tela é intensa, repleta de sentimentos e pulsações combativas, ao mesmo tempo preparado para o amor e para a guerra.

Contando com uma equipe técnica recheada de artistas formados no curso de Cinema e Audiovisual da UFRB, assim como parte do elenco estudantes da própria cidade, esse compartilhar entre gerações são aspectos que saltam o processo fílmico e deságuam na obra como vigor de uma juventude que se desabrocha em amadurecimentos e um cinema altamente inventivo. Reunido com suas amigas, o espaço da sala de aula se reconfigura através das mesas e cadeiras empilhadas ao fundo, abrindo espaço para as rimas entoadas em conjunto com uma musicalidade do Rap “própria” do Alagoas. Corpos efervescentes que eletrizam o som e o próprio espaço disciplinador. Nas rimas, as provocações aos meninos da turma oferecem intimidade ao explorar cada personagem em cena, com a câmera observando cada um/uma em seu tempo. Nas rimas de Fabrício salta-se a própria exaltação de si mesmo como merecedor de boas relações, convocando uma autonomia e uma posição que não se curva às violências e violações. Quando o sino da escola ecoa, os alunos correm em pleno fôlego para espiar dois colegas se beijando. Fabrício é confrontado pelos próprios sentimentos quando seu colega — por quem sente um calor especial — beija uma das suas amigas. O muro invisível da paixão é abalado. Em meio aos ruídos e palmas incentivadoras, o colega de sala lança uma espiada de olhar sutil em direção à Fabricio, pouco antes de voltar a beijar a menina com coro dos outros estudantes, matizando nesse gesto tanto uma provocação quanto uma preocupação com o outro afetivo, mesmo que a rejeição seja a constante dessa relação.

A fotografia assinada por Lilis Soares (“Um dia com Jerusa”) articula essas tensões ferventes ao intensificar, como se entrasse em chamas, os movimentos da câmera nos momentos mais inquietantes como a cena do beijo e a emblemática cena do conflito. O uso das cores, cujo uniforme escolar se destaca pelo azul e vermelho — relacionáveis ao gelo e fogo, respectivamente -, assim como o vermelho contido nos desenhos da mesa e no cabelo de Fabrício reforçam o calor presente no título da obra. A partir dessas cores é possível também conciliar com uma dualidade presente pelo próprio Fabrício, como a cena em que a professora (Janet Bomfin) fecha o caderno em que ele desenha uma roupa colorida (que se materializa ao final da narrativa) e a foto de capa do caderno contrasta com o desenho, aproximações pelas diferenças, com a imagem de um moto em uma acrobacia radical. O design de som assinado por David Aynam (“Ensaio sobre a Ausência) reverbera pelos ruídos tipicamente escolares, vibrando em cacofonia de estudantes que estão sempre a falar, assim como também opera silêncios nos momentos de introspecção de Fabrício. A direção de arte e figurino, assinadas respectivamente por Lucas Cardoso e Jailma Bonfim, utiliza o espaço escolar em plena potência para estabelecer elementos cênicos e sígnicos, como a pichação na parede dos territórios circundantes à escola que vira uma das frases do poema de Fabrício, assim como materializa as vontades do protagonista quando a roupa desenhada por Fabrício ganha corpo na fabulação “video-clipada” ao final.

Motivado pelo professor que recita poesia em sala de aula (Zé da Silva), os/as estudantes precisam fazer uma poesia para a aula. O olhar lançado pelo amor platônico à Fabrício revela uma provocação quando posteriormente o colega de classe “rouba” a bicicleta vermelha do protagonista. Indo de encontro com sua paixão antagônica para um embate final, acompanhado por suas fiéis companheiras, Fabrício movimenta-se com cuidado sob a penumbra que pré-anuncia o ataque final contra o colega e o próprio dispositivo cinematográfico. O colega de sala provoca Fabrício dando voltas com sua bicicleta e recusando-se a devolve-la. O rodopiar da câmera e a montagem ligeira em meio à cacofonia sonora, evocam as tensões que explodem nesse conflito afetivo. Fabrício, com uma pedra nas mãos, lança-a em direção ao colega e a câmera, estilhaçando em simultâneo a parede invisível da paixão e a lente do dispositivo cinematográfico, implodindo as barreiras da imagem e projetando, em seguida, sua própria narrativa compartilhada com suas amigas. Assumindo a estética narrativa dos videoclipes, Fabrício, vestido com a roupa que desenhou no caderno, junto com suas amigas convocam a frase “Guerrilheira do Amor” como poderio, um armamento performático. A autonomia explosiva de Fabrício fabula narrativas performáticas que inscrevem no corpo do filme sua potência catártica, quebradora de amores platônicos e lentes. Fabrício recusa o tratamento recebido pelo interesse amoroso elevando sua autoestima. O estilhaçar da lente provoca-nos a refletir que esse dispositivo não é capaz de conter a presença fechativa de Fabrício. A narrativa se recapitula através da fala do professor, ecoando no espaço-tempo fílmico, projetando as imagens iniciais novamente. Dessa vez, entendemos as circunstâncias que levou Fabrício a escrever o poema, a gozação dos colegas de classe oriundas dos ruídos ao fundo, assim como a continuidade da leitura do poema — interrompida de início — explora o superar essa paixão não compartilhada, pois “quem ama e não é amado, fume um baseado e fique chapado”.

Frame de “Ilhas de Calor” (2019)

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