I May Destroy You e a Deseducação de Michaela Coel
Por Otávio Conceição
"Bem, o Bob deve achar
que você é doida mesmo.
Ele acha que tudo isso é desnecessário, que a ideia de espaço pessoal foi longe demais. Ele expressa isso com confiança, já investigou bem para saber de quais limites e violações essas mulheres reclamam tanto, porque o Bob é bem minucioso. Nessas investigações, o Bob encontrou a linha que o separava de todo o resto. Em vez de cruzá-la de vez, ele foi com a ponta dos pés, experimentando o sentimento de estar bem no limite, bem na divisa, em cima da linha, nem em um lugar, nem no outro, e viu que nessa área indefinida, onde nada era claro, ninguém podia ser claro. Não conseguimos articular, confundimos as palavras e não sabemos dizer exatamente o que ele fez que pareceu tão errado. O Bob acha mesmo que você é doida. Ele se acha o mais inteligente, que sabe de tudo, porque ele observou os detalhes. Temos que começar a observar o Bob, dizer a ele que também vemos os detalhes. Estamos vendo você, Bob, o que significa que estamos bem ali com você, com a ponta dos pés em cima da linha, atrás de você, e naquele lugar onde as regras,a clareza, a lei e a separação deixam de existir.
Vamos mostrar exatamente o que queremos dizer ao falar de violação." - Monólogo de Arabella
Esse é um dos monólogos que marcam a série I May Destroy You, criada por Michaela Coel, e que definem bem o padrão de análise da série. Eu tive muita dificuldade de começar essa review, por diversos fatores, um deles é que a série é bem curta mas bem recheada, seus debates ficam pluralizados e se dividem forma "setorial", como se tivéssemos um assunto principal que forma galhos e vai se ramificando para outros assuntos tão importantes quanto. Do principal aos coadjuvantes, dos coadjuvantes ao principal. A própria Michaela fala que a série não é sobre um assunto em particular, mas sim sobre tudo. É bastante desafiador comentar sobre um nicho específico de uma série que em doze capítulos se emaranha em diversos tópicos. Tópicos esses que vou tentar destrinchar aqui.
Dito isso, I May Destroy You fala sobre a escritora Arabella, uma londrina cheia de amigos e com uma carreira promissora, mas que acaba sofrendo um trauma repentino (vai ficar mais claro a frente), e então ela precisa questionar e reconstruir todos os elementos de sua vida. E isso acaba direcionado ao principal propósito da série, que é falar sobre consentimento. Arabella é feita pela incrível Michaela Coel(atriz britânica de 33 anos), que criou, roteirizou e produziu a série pela HBO/BBC. A série também é baseada em um trauma pessoal da vida de Michaela durante as filmagens de sua primeira produção autoral, Chewing Gum, série da Netflix com a BBC. Durante o trajeto da série, se você sabe todo o contexto da carreira e da linguagem artística de Michaela, é difícil não fazer a associação com Arabella, aqui ela trás seus fantasmas do passado juntamente com sua fórmula específica de humor/drama que já vimos em Chewing Gum.
Prelúdio com a Netflix
" Eu acho que foi difícil, porque definitivamente não foi eu dizendo "eu sei o meu valor", porque eu cheguei muito perto de assinar, estava com o contrato na mão. Mas me soou estranho um show que fala sobre desempoderamento e que eu dirigi, estrelei e escrevi, eu não possuir os direitos autorais. Uma série que fala sobre exploração e ainda sim eu não ter meus direitos." - Michaela Coel para CBC
Desde de Chewing Gum, a relação de Michaela com a série e com a Netflix estremecia bastante. Apesar do streaming a tornar conhecida, a produção da série foi conturbada com denúncias de assédio moral e racismo. O que fez Michaela falar abertamente sobre os casos em diversas plataformas, relatando a dificuldade de produtores negros no audiovisual. Entre as sessões de pitching de I May Destroy You, a Netflix se mostrou interessada pela série, devido também ao bom histórico de parcerias com Michaela (até então eles tinham Chewing Gum, Black Earth Rising e dois episódios de Black Mirror, todos esses estrelados por ela). Eles proporam um contrato que continha um bom salário, domínio artístico e cênico e entregaram a co-direção para ela. Porém ela perderia os direitos autorais da sua obra. Muito perto de assinar, Michaela optou por entregar a distribuição da série para uma emissora na qual teria mais controle, a BBC.
Eu Posso Te Destruir
"Quando aparece o letreiro no início dos episódios e vemos digitar "I May Destroy You" e de repente se deleta o "You" quer dizer: eu posso destruir você, eu posso destruir a mim mesma, eu posso ser totalmente inconsequente e destruir tudo e todos a minha volta. Quem está dizendo isso? É a Arabella? É o homem que a estuprou no episódio 1? Quem vai destruir quem? E isso eu gosto de deixar aberto, assim como as outras coisas, para nós experimentarmos essa curiosidade. Eu não tenho uma resposta correta e é aqui onde eu gosto de me colocar como criadora." - Michaela Coel para a British GQ
Arabella não é um exemplo a ser seguindo. Durante a série ela apresenta características de possessividade, irresponsabilidade e invasão. Seus amigos também transpassam péssimas características. Isso é um dos toques da criação. Michaela ao The Daily Show diz o seguinte: "Você não pode seguir um herói cegamente, e Arabella é a heroína dessa série". Arabella no início da série passa por um trauma que faz com que instantâneamente fiquemos do lado dela, e depois deparamos com uma dificuldade moral de continuar seguindo a personagem devido a sua conduta duvidosa. E a série não dá uma margem para ditar o que é certo e o que é errado, ele põe personagens potencialmente destrutivos para interagir e ver o desenrolar das possibilidades. Remetendo bastante a vida real: somos todos personagens com grande poder de destruição em massa, seguindo heróis que possuem esse mesmo poder, de forma desordenada.
Síndrome de Aggretsuko
Não há um livro de conduta de como lidar com traumas passados. Cada indivíduo possui uma experiência singular. Na série vemos múltiplos personagens sofrerem interferências drásticas em suas vidas e a partir dos processos de aprendizagem de cada um durante a tentativa de superação do trauma, notamos o quão distoante é a metodologia da superação. Porém uma coisa que continua padrão é: a reação acontece, independente de como aconteça ou independente de você internalizar ou externalizar esse processo. Caso externalizada, voltamos ao parágrafo anterior e vemos que a possibilidade de sermos um fio condutor para afetar negativamente outras pessoas a partir do nosso "poder de destruição" é mais que real. Caso internalizada, podemos recolher essa reação para nós mesmos e reagir de formas que não controlamos e que não conseguimos prever. Falando de forma mais ilustrativa sobre a reação interna, peguemos o exemplo da personagem da série animada Aggretsuko: uma simpática panda vermelha antropomorfa que trabalha em um escritório e recebe duras críticas todos os dias, sempre internalizando seu estresse diário. E para aliviar essa carga, acaba invocando sua versão "death rock" numa sala de karaoke, cantando injúrias para todos que a atormentam, em sigilo. A questão é o quanto isso é saudável? O quanto externalizar também é saudável? A série não dá respostas quanto a isso de forma intencional: o que fazemos depois do trauma passeia entre a normalidade, "tudo é normal e nada é normal" segundo I May Destroy You.
As Coisas que Guardamos Debaixo da Cama
"Acho que vale a pena explorar a possibilidade de você ter uma ideia de si mesma, digamos "A"...de Arabella, e existe uma linha. Uma superfície, uma cama. Coisas perigosas, sombrias, tudo que contradiga ou ameace a sua percepção da realidade vem para cá. Acontece mais vezes do que você imagina. Esta linha separa o bom do ruim, o amigo do inimigo,homens, mulheres, negros, brancos, eles, nós, criminosos, vítimas, Deus, diabo… Ela nos ajuda a desviar, a evitar a responsabilidade, a incerteza e a culpa. Esses sentimentos são cruciais na recuperação. Se não conseguirmos processá-los e entendê-los, não vamos nos processar nem nos entender."- I May Destroy You
E porque internalizamos tantas reações negativas? Talvez porque seria o caminho mais fácil para tentar superar o trauma e seus desdobramentos. Não é uma tática eficaz. Temos uma imensa urgência de repulsa em tudo aquilo que nos contradiz e "arquivamos" esses processos antes mesmo de entender porque nos afeta tanto. Negar condutas alheias que interferem na nossa vida, porque deixamos o nosso ego interferir no raciocínio. Nega-las não vai fazer com que deixem de existir. É preciso tirar os monstros debaixo da cama.
Odoyá: A Água é Substância
“A água é bastante importante para mim nessa série. Porque ela é extremamente poderosa. É aquela sensação de olhar para o mar e perceber que aquilo pode te engolir por inteiro e o quão pequeno nós somos. E também porque boa parte do nosso sistema é formado de água. Ou seja, somos feitos por aquilo que pode facilmente nos destruir. Eu acho isso fascinante.” - Michaela Coel para British GQ
De obras audiovisuais conhecidas como "A Dama na Água" e "Moana" até curtas brasileiros como "A Mulher do Fim do Mundo" e "Cartas para Ana", vemos como a formação da personagem feminina em conjunto com a substância da água agrega muito na versatilidade da criação narrativa. Liberdade e imensidão são sinônimos do resultado dessa equação, que proporciona um dos melhores momentos em I May Destroy You.
A Morte do Ego
I May Destroy You dança com a própria desgraça, não dando as respostas que estamos acostumados, por achar que não existe resposta correta para certas perguntas...e por isso seu final (e seu todo) é tão fascinante. Deixamos de perguntar "porque" e passamos a perguntar "quando".
Quando podemos superar ?