I Love Dick

Viu&Review
4 min readJul 6, 2020

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Por Lina Cirino

A série “I Love Dick”, exibida na Amazon Prime desde 2016, contém apenas uma temporada com oito episódios e foi baseada no livro autobiográfico também denominado “I Love Dick”, escrito por Chris Kraus, publicado pela primeira vez em 1997, nos EUA.

I Love Dick foi escrita por Jill Soloway e Sarah Gubbins e traz no argumento (resumo da trama do roteiro) três personagens protagonistas: Chris Kraus, Dick e Sylvere. Um não-triângulo-amoroso. Chris Kraus (Kathryn Hahn) é uma cineasta feminista frustrada que acompanha seu marido Sylvere (Griffin Dunne) até a cidade de Marfa, no Texas, EUA. Sylvere saiu de Nova York e se mudou para Marfa porque ganhou uma bolsa para estudar “a Estética do Holocausto” no concorridíssimo Instituto Marfa: idealizado e administrado pelo famoso artista e pesquisador Dick.

Dick (interpretado por Kevin Bacon) incorpora tudo que se espera de um macho-alfa-artista-intelectual-dominante-do-final-do-século-vinte. Sua performance é de um cowboy sexy. Mas Dick não é um cowboy sexy. É apenas um cara. Dick é um personagem que evoca o homem-modelo-padrão ocidental. Dick não é ninguém especial. Dick é um babaca. Dick é um jogo de palavras. Dick é uma metonímia.

A narrativa da série é baseada em uma palavra. “Obsessão”. Obsessão causada pelo seu antônimo: indiferença. A indiferença de Dick causa uma obsessão em Chris. A obsessão de Chris motiva sua criatividade. A partir de sua obsessão, Chris começa a escrever Cartas de Amor e Desamor para Dick. À medida que Chris escreve para Dick, escreve também para si.

A primeira carta que Chris escreve, num insight (repleto de desejo e repressão) após o jantar, é apresentada ao espectador concomitante a uma possível memória de Chris do que poderia vir a ser o jantar. A cena do jantar é determinante para a trama da série: Chris (ou sua habilidade artística) é questionada por Dick. Sem nunca ter visto seus filmes, Dick afirma que Chris não é uma boa cineasta — e que, na verdade, nenhum filme feito por mulheres presta. E seu marido, Sylvere, repetiu (conscientemente ou inconscientemente) a postura questionadora de Dick. A escolha da diretora de narrar essa opressão através de uma câmera subjetiva somada à quebra da quarta parede acentuam a sensação de intimidação. Ademais, se associarmos aos demais simbolismos contidos no ambiente da cena (um restaurante de caças, cuja decoração é composta por cabeças de animais penduradas na parede) — sublinha-se o sentimento de intimidação. Chris sentiu-se acuada, como uma presa encarada por seu predador. E sua reação imediata foi fugir (para o banheiro). Quando retornou de sua fuga decidiu encará-lo: comunicou a ambos a decisão de ficar em Marfa para frequentar (leia-se enfrentar) as aula de Dick.

Em casa, com insônia, ela pega o notebook e começa a escrever a sua primeira carta. À medida em que ela lê, percebemos uma projeção poética do jantar que poderia-ter-sido, através de suas palavras e flashbacks de imagens da ordem do imaginário. Captura e surpreende o espectador-leitor: a revisitação da sequência do jantar composta de cenas de repressão foi transmudada em cenas de desejo. Há mudança na luz (mais amarelada e aconchegante), no enquadramento (que são mais íntimos, expressos através de planos em close) na mise-en-scéne (mais surrealista), na atuação (o olhar de Dick não é mais de intimidação, mas de sedução). O cinema fazendo a sua mágica em traduzir sensações em imagens e sons. Isso transforma o conteúdo simbólico mencionado acima num conjunto sequencial de índices que orquestradamente aponta para outra nuance de significação, acentuada pela trilha sonora.. Ouvimos a voz de Chris narrando a sua carta-imagem ao som da música sensual Fire, de Mal Devisa.

Fire in my brain

Will you make it ok?

Can you make it ok?

I sit in my room

Holding myself accountable

If this is the end

I’ve made myself breathless

With all of my worthlessness

Fire in my brain

Will you make it ok?

Does it kill you to know that we’re all dying?

It kills me to know

(Fire — Mal Devisa)

Chama-nos atenção, em especial, nos simbolismos contidos na reformulação das cenas: a venda nos olhos de todas as mulheres que compõem a mise-en-scéne. Interpreta-se desta escolha, a sensação de que o desejo de Chris (uma mulher supostamente feminista) por Dick (um homem supostamente machista) não fosse captado ou visto por nenhuma outra mulher. Ela traía não a seu marido, mas a sí — mulher.

À medida que Chris vai lendo a carta à Sylvere (e ao observador-leitor) revela-se a contradição, a dualidade Desejo e Repressão, o que se entende e o que se sente, o visível e o invisível, a razão e a emoção.

Trata-se de uma série feminista (roteiro, fotografia, direção, produção e edição de som foram assinados por mulheres) que suscita debates — além de feminismos — sobre sexualidade, gênero, masculinidade, erotismo, desejo, obsessão, casamento, monogamia, instituição acadêmica, poder, identidade, moral, cinema, direitos autorais, “arte”, poesia.

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