“Guisados on Sunset” e a experiência que se transfigura a cada rememoramento

Viu&Review
3 min readDec 10, 2020

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Por Luan Santos

Existe um tipo de filme que me atravessa pela experiência de um jeito que as mínimas intenções de interpretar os significados ocultos, assimilar, criar um sentido unívoco que explique seus movimentos de ida e vinda, parecem um ato contra a própria experiência fílmica. Isso aqui não é uma crítica tradicional. Não escrevo aqui numa tentativa de descrever o caminho narrativo delimitado, interpretar os símbolos, nem analisar as possíveis intenções do realizador do filme, mas em busca de uma reflexão sobre a obra que se foque na fruição, no latejamento da experiência como uma ferida aberta, exposta, em que a cada cutucada ansiosa se abre mais. A obra em questão é “Guisados On Sunset” (2020) de Terence Nance que me conduziu em digressões contínuas por um fluxo de consciência hiperativamente conectado ao mundo contemporâneo. Como se eu fosse levado ininterruptamente por uma onda de redes sociais, imagens do google, horóscopo e animações rabiscadas na tela.

A narrativa origina-se a partir de uma experiência compartilhada por várias pessoas: uma conexão perdida. Aquele tipo de conexão perdida em que em algum lugar, em um momento específico, esbarramos com alguma pessoa que nos arrebata no primeiro contato, que nos faz olhar no canto dos olhos para observar aquela presença que vai embora antes que saibamos seu nome. Desse encontro, o remorso persiste em ecos de “E se?”; “E se eu tivesse dito meu nome?”; “E se eu tivesse dito alguma coisa?”. E a cada tentativa de reavivamento da experiência, que a nossa memória capturou tão ligeira e fugitiva, acaba se transformando em abstração.

Partindo dessa conexão perdida, a narrativa de “Guisados on Sunset” se desenrola em várias conexões mentais e memórias abstratas desse encontro vivido pelo personagem/realizador Terence Nance em um restaurante. Terence, com sua voz-off feminina (Tayarisha Poe), percorre pensamentos que tentam recompor o encontro, as sensações que teve, o rosto da mulher que o encantou, como se fosse um gesto de estabelecer uma conexão fílmica destinada a pessoa que o marcou. A participação do diretor em suas obras — seu primeiro longa “An Oversimplification of Her Beauty” (2012) e em sua série “Random Acts Of Flyness” (2018) — me coloca num lugar de intimidade fílmica com suas relações, um compartilhamento amigável entre realizador e espectador mediado por uma fruição experimental, marcada pela sensorialidade.

Em “Guisados on Sunset”, Terence cria uma obra audiovisual conectada com as experiências fílmicas online — a proporção de tela vertical que lembra um celular -, influenciado por hiperlinks tecnológicos e cinematográficos, mesclando linguagens como animação, desenhos, e imagens de sites da internet em digressões contínuas de uma narrativa que não está preocupada em ser fiel à realidade, mas (re)inventá-la em uma experiência visual hipnótica, ligeira, como divagações antes de pegar no sono. Uma experiência fílmica, que assim como um encontro ocasional em um restaurante à noite, é rápida, não dá tempo de respirar, o fluxo nos carrega sem controle até que chegue ao seu fim. E assim, como uma memória que vai se tornando mais abstrata com o ato de lembrar, o contato com “Guisados On Sunset” ficou em minha mente por dias, se tornando cada vez mais complexo, opaco, a cada tentativa de reflexão sobre a obra.

“Guisados on Sunset” parece-me um gesto de recriar uma conexão inicialmente perdida em uma linguagem audiovisual conectada ao mundo digital, marcada por uma originalidade experimental que reverbera em uma fruição sensorial pulsante. Um filme tão arrebatador quanto o encontro que o originou.

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