Futuros negros além do fim do mundo

Viu&Review
7 min readOct 1, 2020

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Por Luan Santos

Muito se tem discutido sobre Afrofuturismo e possibilidades de imaginar futuros negros por meio da ficção especulativa, seja nas obras mais midiáticas e sucessos de bilheteria como “Pantera negra” (2018) de Ryan Coogler, no recente e poderoso álbum visual “Black is king” (2020) dirigido pela Beyoncé e por diversos artistas negros ou no arrebatador “Negrum3” (2019), curta-metragem de Diego Paulino que impressionou todo audiovisual mundial com sua performance de uma negritude espacial referenciando os ensinamentos do profeta intergaláctico e músico Sun Ra. Mark Dery, a partir das conversas com artistas e intelectuais negros como Tricia Rose, Samuel R. Delany e Greg Tate, cunha a expressão “Afrofuturismo”, no inicio da década de 1990, para caracterizar criações artísticas realizadas por artistas negros que explorem futuros possíveis para as populações negras por meio das ficções cientificas e especulativas. Desde então, a expressão foi teorizada, repensada e potencializada por teóricos e artistas negros, até se tornar uma das estéticas políticas e artísticas mais comentadas da atualidade. A questão que sempre me atravessa ao ver tais filmes é como criar, imaginar, vislumbrar futuros possíveis para as populações negras quando nosso passado foi destruído e nosso presente é constituído por massacres diários? A existência utópica de futuros negros promissores em um mundo anti-negritude, contaminado pelo colonialismo, capitalismo, machismo, etc. parece-me impossível, afinal se encararmos o tempo como acumulativo, ou seja, uma acumulação histórica continua de práticas e ferramentas opressoras para as populações negras, então só resta ao futuro ser o que já aconteceu. Tais futuros negros não podem existir em um mundo que despreza a negritude. Sun Rá em seu filme afrofuturista “Space is the place” (1974) deseja retirar as populações negras desse mundo e buscar nosso futuro no espaço.

Outra corrente conceitual teórica negra, o Afropessimismo, reflete sobre a existência negra a partir do fim do mundo contínuo que é a colonização, sendo a abolição da escravatura um deslocamento do sujeito negro em outra condição de não-existência em um mundo colonizado e branco. O fim do mundo já aconteceu e continua a acontecer diariamente seja pelo encarceramento em massa, o genocídio da população negra e a morte social desses sujeitos. As populações negras “vivem” em um mundo pós-apocalíptico. “A Mulher no Fim do Mundo” (2019) de Ana do Carmo, uma distopia do presente, reflete sobre fins do mundo: O fim do mundo constante em que sujeitos negros vivem uma não-existência e o fim desse mundo branco como possibilidade de constituir outros mundos possíveis para as populações negras, longe de todo colonialismo e antinegritude, um “Devir Negro” como conceitua o intelectual camaronês Achille Mbembe. A pergunta que ecoa pelo filme e que instiga a ficção especulativa negra é: Como pensar futuros negros além do fim do mundo?

A Mulher no Fim do Mundo, inspirado no álbum "A Mulher do Fim do Mundo (2015)" da cantora Elza Soares, conta a história de Benedita e da garota Lua, duas mulheres negras que viram o velho mundo sucumbir e agora são as únicas sobreviventes. Nesse cenário pós-apocalíptico, o curta-metragem retrata uma jornada pela busca da quebra do silêncio, pensando os inúmeros processos de silenciamento passados pelas personagens no velho mundo.

O curta-metragem “A Mulher No Fim do Mundo” utiliza de uma poética visual e sonora poderosa para refletir sobre processos íntimos e compartilhados entre duas mulheres negras em um mundo pós-apocaliptíco. As experiências racistas e machistas que vivenciam enquanto mulheres negras atravessam as personagens de Benedita (Tainah Paés) e Lua (Maria Luiza Apolônio), que sobrevivem em um mundo de ruínas físicas e psicológicas. Os silenciamentos que a sociedade racista e machista impõe nessas mulheres não a impedem de compartilhar de uma linguagem própria, com as mãos e gestos que as ligam através do afeto compartilhado, assim como o desejo de buscar um novo mundo em que a liberdade ilimitada da existência negra e feminina seja uma realidade. Benedita percorre todos os dias as ruínas do agora velho mundo, em busca de alimentos que já não mais existem e memórias que se recusam a serem esquecidas. Em meio a monólogos internos de suas personagens, a diretora e roteirista Ana do Carmo – também diretora do íntimo e potente “A Caixa de 4 Cômodos” - reflete, com uma lindeza de tirar o fôlego, sobre a solidão das mulheres negras, as experiências compartilhadas entre elas, o afeto que as conforta uma nas outras e possibilidades de futuro além do fim do mundo. O fim do mundo para as mulheres negras em um mundo embranquecido, colonial e machista é cotidiano. Para existir possibilidades de futuro em que as vozes das mulheres negras ecoem, é preciso destruir o mundo como conhecemos.
Com uma narrativa experimental arrebatadora, o filme constrói signos potentes que reverberam em nós em busca de reflexões e entendimentos. O mar, a borboleta colorida, o rádio, são elementos cruciais para a poética estética, política e discursiva que o filme constrói. O mar para nós, pretos diaspóricos, é mais que um lugar físico e sim uma possibilidade significante de liberdade. Existe uma dualidade conflituosa que o mar se apresenta para nós, sendo o caminho pelo qual os navios de escravizadores transportaram nossos ancestrais para os terrores da escravidão e o refúgio que alguns de nossos ancestrais buscaram como forma de escapar dos senhores escravagistas. O mar como signo de liberdade, se apresenta para nós através do filme como potência de mudança e ligação com outras possibilidades de mundo. Benedita vai ao mar em busca de alimento, mas também o procura como lugar de refúgio das ruínas que a cercam. Enquanto protetora de Lua, Benedita tenta afastar a menina desse mundo que nos aterroriza, desumaniza, e nos mata. Benedita busca preservar Lua da experiência do velho mundo, para que este não impregne a menina com experiências impossíveis de serem superadas. Lua deseja voar assim como a borboleta colorida em seu quarto, mas as paredes invisíveis deste mundo as prendem, assim como os cômodos pouco iluminados da casa que não pode deixar.

A fotografia assinada por Ariel L. Dibernaci (diretor de “A Sete Tragos do Chão”) é de uma beleza estonteante, criando um espaço imagético totalmente diferente dos que estamos acostumados ao se pensar em fim do mundo. Um fim do mundo tropical com cores vibrantes que contrastam com as ruínas e os vazios desse espaço apocalíptico através de planos que permitem que as personagens reflitam sobre suas condições. Através da montagem, assinada pela própria Ana do Carmo e de Ariel L. Dibernaci, o ritmo do curta é de uma cadência que nos inunda de sentimentos, seja de angústia à contemplação da relação afetiva daquelas mulheres. A manipulação do tempo, seja por elipses pontuais ou raccord’s que conectam temporalidades, é de uma sensibilidade que nos deixa completamente imersos na narrativa. Perpassado por momentos inquietantes, o som cria um espaço de vazios e silenciamentos, aliado de uma sensibilidade potente que conduz esses corpos por seus monólogos internos.
Em um momento crucial do filme, onde as temporalidades do passado e do presente se chocam, Benedita se encontra com ela mesma na condição de empregada doméstica servindo homens brancos. A arquitetura colonial da casa evidencia a condição de subserviência que mulheres e homens pretos são violentamente colocados desde a escravização. O presente são linhas (in)visíveis do passado que prendem Benedita. Mas o som do mar corta essas linhas. A ancestralidade está presente na figura de Benedita, essa mulher negra que viu o mundo sucumbir e carrega as marcas em seu físico e psicológico. Lua quer se parecer mais com Benedita, mas essa quer que a menina busque um futuro longe daquele espaço. Só podemos vislumbrar novos futuros negros ao nos virarmos para a nossa ancestralidade, aprendendo e entendendo os caminhos que nossos ancestrais trilharam para que nós pudéssemos ter um futuro. Benedita ensina Lua a pescar no mar em uma cena que emociona pela força e sensibilidade na qual a relação delas é desenvolvida. Lua, vestida como Benedita, transcende esse mundo em ruínas através de uma luz que a leva à outra possibilidade de mundo. Benedita, agora sozinha, busca sua liberdade desse mundo apocalíptico em que vivemos nas águas azuis do mar, deixando que as águas lavem suas dores.

Outro signo importante a ser observado no filme é a presença do rádio como uma tecnologia transformadora, que mesmo defasada na atualidade, continua a ser utilizada pela sociedade. Em “A Mulher No Fim Do Mundo” o rádio é a tecnologia afrofuturista capaz de nos levar até o futuro e nos conectarmos ao passado, potencializando a voz negra feminina pelas temporalidades. Pelo rádio que Lua consegue ser ouvida pela primeira vez, rompendo com os silenciamentos do velho mundo e nos agraciando com um novo mundo negro e feminino, onde essas vozes vão ser ouvidas.
O fim do mundo como conhecemos é um programa necessário para que a população negra possa imaginar e realizar outras visões de futuro, longe das colonialidades. “A Mulher do Fim do Mundo” narra um tempo além do fim do mundo, onde as ruínas físicas e psicológicas cercam as personagens e estar longe desse mundo é a única possibilidade de um futuro negro e feminino. Que as vozes das mulheres negras ecoem pelas temporalidades com toda sua potência, imaginando e criando novos mundos.

Referência: O futuro será negro ou não será: Afrofuturismo versus Afropessimismo - as distopias do presente – Kênia Freitas e José Messias.
Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/dasquestoes/article/download/18706/20446/40360
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