Fabular entre as brechas do trauma
Por: Luan Santos
Muito tem-se discutido nos processos reflexivos em torno do audiovisual negro em como abordar histórias traumáticas de violências contra corpos negros sem infligir e reverberar as agressões pelas imagens que chegam aos espectadores, ou seja, como criar narrativas que escapem do grafismo da crueldade colonial — explorada pela branquitude em suas narrativas — para contar nossas histórias como potência questionadora das estruturas racistas e criadora de mundos em que pessoas negras possam existir além das violências. Os Cinemas Negros no Brasil têm elaborado narrativas que possibilitam outras formas de lidar com o trauma e a violência racial em práticas de hackeamentos que implantam pulsações de vida em histórias que tratam sobre a morte.
Em “Rio das Almas e Negras Memórias” de Taize Inácia e Thaynara Rezende, costura-se uma narrativa com multiplicidade de linguagens — a videodança e a ficção — que se engendram em performances de corpos negros que pulsam suas identidades afrodiásporicas e manifestações culturais confrontando a estrutura colonial da escravidão e do garimpo no Rio das Almas em Pirenópolis-GO. Baseado em histórias reais — como diz a cartela ao final — das atividades de garimpo escravocratas que enriqueceu a família Frota através de violências raciais, sacrifícios humanos e agressões de todas as formas contra corpos negros, a narrativa tece a relação entre o sangue que escorre nas águas do rio e o ouro ostentado pela família.
A cartela inicial rememora uma fala da Sinhá que acredita que o ouro de sua família — acumulados na exploração do trabalho escravo — não irá acabar e é mais fácil o rio subir à serra do que isso acontecer. Uma mulher negra vestida de branco corre pelas margens do rio cambaleando ensanguentada em fuga enquanto a montagem articula planos de uma mulher branca ostentando riquezas oriundas do trabalho escravo. A narrativa tece temporalidades espiralares ao relacionar perspectivas temporais não lineares. A relação de sincronicidade de gestos opostos — a mulher negra lava o sangue que escorre em seus cabelos nas águas do rio ao mesmo tempo em que a sinhá branca passa grãos de ouro nos cabelos — enfatiza a violência colonial que lucra com o sangue negro.
As performances de dança em meio e pelas brechas dos trabalhos forçados de garimpo revelam a fabulação que contorna a experiência traumática, exibindo a coletividade entre os negros escravizados e suas expressões culturais com os corpos. Ao som de tambores e atabaques que vibram os corpos, os homens e mulheres afrodiaspóricos carregam os instrumentos de trabalho enquanto dançam em sincronia. O capataz branco que os vigia não enxerga a performance, pois aparentemente está localizada em outro espaço de habitação que não abriga olhos coloniais. Um espaço imagético que permite a existência negra. Por um momento, durante a dança, os instrumentos de trabalho são deixados no chão para que os movimentos sejam mais livres e soltos, como um alívio poético que logo sucumbe diante da agressão que o capataz açoita em seguida.
As danças são executadas com efervescência, guiando os movimentos de câmera ligeiros e a montagem ritmada com os corpos, fazendo ressoar os ruídos oriundos do trabalho como melodias que se fundem às músicas instrumentais e cantadas. Os sons da picareta (instrumento) que perfura o solo, os ruídos das pedras chacoalhando no coador, as roupas molhadas sendo batidas nas pedras ao serem lavados no rio se misturam com os tambores e os cantos compondo melodias instrumentais onde corpos negros podem expressar suas pulsações de vida em performances. Duas mulheres escravizadas cantam que “todo pensamento é estrangeiro” enquanto lavam as roupas dos escravagistas que colaboraram com a estrutura colonial que retiraram pessoas negras de seu espaço e tempo. Quando essas mulheres retornam à casa grande com as roupas, uma delas olha para o espelho que revela a morte violenta que os escravizados irão sofrer na beira do rio. O espelho como portal que revela o futuro sangrento que corpos negros irão enfrentar. A mulher negra que carrega consigo a bacia com roupas é tocada violentamente pelo padre branco e deixa a bacia cair sob o chão. A narrativa do filme escolhe ocultar as violências gráficas como forma ética de não explorar imageticamente as agressões. O trauma da escravidão se faz presente interrompendo a fabulação. Pessoas negras sofreram inúmeros abusos e violências na escravidão como os estupros que fundaram esse país de fraturas expostas chamado Brasil, que se orgulha de sua “mestiçagem” e sua “democracia racial” ignorando as violências que permeiam os processos de construção dessa ideia de nação que extermina pessoas negras cotidianamente há mais 500 anos. As operações de montagem são conduzidas entre a fabulação de vidas negras que afirmam suas subjetividades e a denúncia crítica da violência colonial.
O agrupamento em círculos, ou a Gira (no idioma quimbundo, nijra, caminho) entre as pessoas negras é o momento de partilhar, de curar coletivamente através da dança e das manifestações culturais que reafirmam suas identidades.
A gira de capoeira faz ressoar os berimbaus e os pandeiros enquanto os corpos se movimentam suavemente na troca de afetos e em pulsações de vida. A dança ao redor da fogueira, é roda que faz emanar a cura que rasga o tecido colonial que prendem os corpos negros. Os batuques ressoam inquietos com a música Inaleoo Le de El Hadji Mahamdou Mbae dit Sena e as roupas brancas que caracterizam suas condições de escravizados se transformam em indumentárias coloridas, estampadas, que reforçam suas identidades africanas, a ancestralidade que transparece nas roupas, nos cabelos e nos corpos, através de movimentos de danças que fabulam suas existências além das violências.
A mulher negra que consegue fugir e escapar da condição de escravizada agora veste um vestido repleto de bordados e jóias, enquanto carrega uma bacia dourada com ervas em direção ao rio para lavar-se, ao mesmo tempo que a sinhá branca, que anteriormente exibia suas riquezas, agora vaga desamparada e faminta pelas ruas. A montagem reforça a oposição e a sincronicidade entre os gestos, assim como estabelece uma resposta irônica à frase que abre o filme. Lavando-se no rio, a mulher negra esfrega as ervas no corpo em ritual ancestral de limpeza. O banho de ervas é o cuidado que limpa as impurezas do corpo e do espírito, renovando a vida e abrindo os caminhos.
Contornar o trauma não é evitá-lo, enterrá-lo no esquecimento, mas um gesto de criar condições de existência que vão além da experiência da dor. Em “Rio das Almas e Negras Memórias” a violência traumática da escravidão é contornada em gestos fabulatórios que performam as identidades culturais afrodiasporicas, mas não pode ser esquecida, pois a escravidão e o garimpo são constantemente denunciados pelas imagens que exibem as crueldades que a estrutura colonial causou e continua a causar.
O final contraria a lógica presente na narrativa de não expor graficamente a violência contra corpos negros, mas a traição do espectador parece ser justamente para reforçar a crítica através do choque que expõe as fraturas abertas quando exibe corpos negros ensaguentados nas margens do Rio das Almas — que não por acaso foi nomeado dessa forma. O som de inúmeras vozes e línguas africanas ecoam sobre as imagens que provocam inquietações. Apesar de condenar o grafismo em imagens que exibem violência contra pessoas negras, percebo um gesto potente em “Rio das Almas e Negras Memórias” quando a narrativa expõe o trauma que não pode ser contido pela fabulação e precisa ser reiterado com criticidade para condenar as violências do passado e do presente.
“Rio das Almas e Negras Memórias” constrói performances musicais de pessoas negras como ato de fabular nossas existências além das violências que sofremos, afirmando nossas manifestações culturais e nossas identidades como potência que confronta as estruturas coloniais ao mesmo tempo que denuncia a exploração escravagista da mineração no Rio das Almas.