“Eu, Minha mãe e Wallace”:

Viu&Review
6 min readJul 7, 2020

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Por Luan Santos

A fotografia como forma de se manter presente

A história da fotografia e do cinema é marcada por opressões raciais contra as pessoas pretas de África e da diáspora. A dificuldade de acessar esses dispositivos de registros, por serem caros e reservados a uma branquitude, impossibilitou que nós, negros e negras, tivessem sua existência registrada e eternizada a partir de nossos próprios olhares.

Os cartões Shirley’s e o padrão de cor das películas fotográficas que favoreciam a pele branca demonstram o lugar de apagamento dos pretos e pretos na fotografia, sendo representados por imagens e olhares dos brancos. Os tempos mudam, mas os sistemas de opressão da nossa imagem e existência continuam a existir. Apesar de hoje ainda sermos atravessados por tantas problemáticas que dificultem o acesso ao dispositivo cinematográfico, o cinema negro brasileiro desde o marco “Alma no Olho” 1974 de Zózimo Bulbul, busca criar narrativas complexas e que abarque nossa subjetividade racial. Através de realizadoras negras/os, o cinema negro brasileiro, em sua variedade temática e estética, dialoga com as pessoas negras e eternizam imagens que mostram a complexidade dos sujeitos negros. Partindo desse ponto, percebi como dois curtas-metragens de duas diretoras brasileiras, Safira Moreira e Yasmin Thayná, dialogam com “Eu, minha mãe e Wallace” (2018) dos Irmãos Carvalho, a partir da relação entre a preservação da memória afetiva e o registro fotográfico como modos de se existir, presente nos três filmes. A partir desse encontro, busco potencializar a experiência de assistir “Eu, minha mãe e Wallace”, assim como perceber a importância da fotografia familiar para famílias negras.

Em “Travessia” (2018), Safira Moreira narra de forma poética o apagamento de fotos sobre nossos ancestrais negros, tecendo uma crítica sobre quem consegue acessar a possibilidade de se registrar e manter memórias dos seus familiares. Sophia narra uma Travessia entre um passado de apagamento imagético e existencial para um presente/futuro que nos possibilita existir, sobretudo, através das nossas imagens.

“Fartura” (2019) articula os registros caseiros fotográficos e audiovisuais como fragmentos de uma memória coletiva da população negra brasileira em que a diretora e narradora Yasmin Thayná se vê emocionada e afetivamente ligada, construindo uma narrativa marcada pelo afeto e ato de partilhar. Intimidade é a sensação que a experiência cinematográfica de “Fartura” nos causa, manifestada pelos áudios das conversas, os registros familiares compartilhados, o som ambiente de cozinha e o compartilhamento de memória. “Fartura” é um titulo apropriado pra expressar uma narrativa farta de tanto afeto, intimidade, memória e temas que são familiares à população negra. A importância do registro está também em compartilhá-lo.

Em “Eu, Minha mãe e Wallace” (2018) dos Irmãos Carvalho, uma fotografia de uma mãe preta ao lado de seu filho preto constituindo uma família sem a figura paterna é o que costura a história.

“Eu, minha mãe e Wallace” se inicia com Wallace (Fabrício Boliveira) segurando uma fotografia familiar de quando era criança com sua mãe. Instigado pelo que a foto te provocou, Wallace percorre um caminho de memórias esquecidas e mágoas. O filme manifesta através de uma narrativa poderosa a ação do tempo em diferentes dimensões. O tempo cíclico que une duas fotos temporalmente distintas que aparecem no início e no fim do filme. O tempo estático pelas imagens fotográficas desgastadas pela própria ação do tempo. O tempo fílmico que se articula como uma fotografia envelhecida e uma memória não revisitada. Pouco se sabe sobre Wallace, o filme deixa nas nuances e silêncios dramáticos os fragmentos dos acontecimentos. Wallace é um homem negro que está saindo de condicional no feriado de Natal. Através dos encontros com pessoas do passado, a narrativa vai expondo, pouco a pouco, os acontecimentos e as mágoas presentes. Wallace visita Bruninho (Robson Santos), seu irmão, e busca uma aproximação em meios às conversas marcadas por um silêncio que compõe a dolorosa passagem do tempo e a volta de um homem para a sociedade depois de 11 anos preso. Talvez o grande trunfo de “Eu, minha mãe e Wallace” seja sua capacidade de controlar a exposição dos fatos ao público, concentrando a narrativa em do jogo de corpos em cena e a tensão entre eles estabelecida pelo não dito.

O filme não expõe o motivo da prisão de Wallace e nem o que os personagens pensam disso, trazendo à tona a dor da ausência causada pelo seu encarceramento. O encarceramento em massa de jovens negros no Brasil, assim como o genocídio da população negra pelo Estado, provoca perdas irreparáveis nas famílias negras que precisam conviver com a dor constante. A ausência é sentida e manifestada de inúmeras formas. Wallace busca reparar sua ausência como pai e vai à busca de sua filha Gabrielle (Sophia Rocha). Batendo na porta da casa de Vanessa (Noemia Oliveira), Wallace busca se conectar com a filha nunca assumida e que não sabe da sua existência. Vanessa deixa claro que está fazendo essa aproximação entre pai e filha por causa de Gabriele. A cozinha é o palco das tentativas de aproximação e os afastamentos ocasionados pela ausência. Wallace não sabe como estar presente naquele espaço tão intimo que é a cozinha, tampouco estar com Vanessa e Gabriele. A dança de corpos que se tensionam, se aproximam e se afastam naquele espaço é uma composição dramática incrível da direção dos Irmãos Carvalhos que consegue atuações fantásticas de todo o elenco, destaque para Noemia Carvalho como Vanessa que entrega uma atuação intensa e magnética em cena. A presença materna marca o filme com mulheres negras que precisam criar sozinhas seus filhos por causa da ausência paterna. Mulheres negras afetuosas que precisam ser fortes para sobreviver a todas as opressões sociais e raciais e cuidar de seus filhos.

A fotografia de Safira Moreira (diretora de “Travessia) tensiona as relações e os afastamentos enquadrando Wallace distante dos outros personagens, assim como investiga os espaços e observa os personagens com um olhar sensível. A luz branca ofuscando o Wallace e a imagem marca um tempo que é presente tanto quanto é esquecido, como olhar de perto para uma fotografia envelhecida. Os sons ambientes marcados pelos ruídos internos e externos potencializam os silêncios dos personagens em uma ótima construção dramática.

Wallace, com uma câmera analógica, convida Gabriele para tirar uma foto com ele. O motivo de fazer a foto é a sua partida para Sergipe, fugindo da condicional. Vanessa demonstra toda sua irritação em ouvir que Wallace não vai assumir a filha novamente, sendo mais uma vez ausente com sua responsabilidade. O filme não julga e apresenta os motivos de Wallace tomar aquela decisão, ao mesmo tempo em que apresenta toda a mágoa que sua falta de responsabilidade como pai causou e vai causar. O abandono parental no Brasil é, infelizmente, uma realidade muito comum na população negra. Homens negros são constantemente marcados pelo genocídio, encarceramento e marginalização de seus corpos e subjetividades, buscando formas de existir em um mundo racista. O racismo e seus desdobramentos marcam as subjetividades de pessoas negras de forma dolorosa. Wallace fugindo do encarceramento repete o ciclo vivenciado por sua mãe e inúmeras mulheres negras.

A foto de Wallace com Vanessa e Gabriele é uma forma de se estar presente naquela família. Mas estar presente não é o mesmo de ser presente. Wallace consegue, de certa forma, se fazer presente do jeito que seu pai não o conseguiu, mas isso não é o bastante. O tempo cíclico, assim como uma realidade marcada pelo racismo, conecta as duas fotos e aquelas famílias. No fim, tanto o filme quanto a foto intitulados “Eu, minha mãe e Wallace” capturam Wallace como um fantasma, em volto pelo flash branco da câmera, esquecido pela ausência na vida de Gabriele.

Referências

“Eu, Minha mãe e Wallace” (2018) Dir. Marcos Carvalho e Eduardo Carvalho. Link: https://www.youtube.com/watch?v=VBdDGFyNoaQ&t=488s

“Travessia” (2017) Dir. Safira Moreira. Link: https://www.youtube.com/watch?v=QleIZUYbXwI

“Fartura” (2019) Dir. Yasmin Thayná. Link: http://portacurtas.org.br/filme/?name=fartura

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