Dossiê Corpas Infinitas: descoordenadas para transitar — O que não tem espaço está em todo lugar, de Jota Mombaça
O QUE NÃO TEM ESPAÇO ESTÁ EM TODO LUGAR, a todo instante
Juan Rodrigues
O que escapa do corpo na imagem? Essa é uma questão que sempre me faço perante obras cinematográficas que partem de si, como no filme de Jota Mombaça. E por sorte, seu próprio título aponta uma resposta: “o que não tem espaço, está em todo lugar”.
Realizado durante o período pandêmico de 2020, OQNTEEETL é um filme que fala de si através da evocação de outras pessoas, especialmente mulheres, cujo destino parece inundar a mente da realizadora. E essa inundação acontece. Nas lágrimas, no corpo, na voz, nos “supercuts” do Instagram, na montagem, no sexo.
É difícil imaginar um filme de estrada que também é um filme de busca e autodescoberta sob as condições que vivíamos em 2020. Como fazer a clausura transcender o espaço? Há muito a se dizer sobre a vivência de pessoas cuja interseccionalidade habita o lugar de onde Mombaça fala. Podemos falar da negligência, do desdém, das estatísticas em torno da longevidade desses corpos. Para a autora, o que importa como imagem, e uma imagem que esteja presente no filme, é a de alguém cujo cansaço e desejo pela vida também caminham paralelamente.
Pensar como a diretora propõe é pensar no multiverso de mulheres, pessoas, lugares e experiências que atravessam a narrativa criada e costurada por fragmentos da vida íntima de Jota, mas apenas os que ela se propõe a compartilhar. O que ao mesmo tempo limita o quanto acessamos de sua dor mas traça um recorte muito específico de vivências e questionamentos de pessoas cujos traumas infiltraram sua saúde mental,o que se intensificou perante o confronto com o eu causado pelos isolamentos sociais colocados durante a pandemia de COVID-19.
É interessante considerar também o recorte feito pelo próprio projeto do Instituto Moreira Salles, sobre quem se convida e sobre o que se conta. Dentre as obras realizadas pelo projeto, a de Jota Mombaça traz uma linguagem que é constituída de uma coleção de intimidades e desvio, de complexidade emocional e de lascívia. Mas, sobretudo, é constituída de medos e inseguranças em torno do esquecimento do “eu”.
A coletividade na intimidade
Letícia Cristina
Em O Que Não Tem Espaço Está Em Todo Lugar (2020), a realizadora Jota Mombaça manifesta um desejo de se fazer presente em todos lugares, de poder encontrar em todos os espaços o seu lugar de conforto. Ao início do filme ouvimos Jota recitar um texto sobre mulheres que cometeram suicídio, dizendo seus nomes e a causa de sua morte. Ao dizer repetidas vezes “você é”, Jota chama o espectador para se aproximar dela e deste filme de maneira mais íntima, buscando criar uma identificação com quem assiste, já que enquanto ouvimos o texto de Koleka Putuma, vemos imagens de Mombaça sentada em seu quarto. Quarto este que, assim como o corpo de Jota, nos é apresentado de maneira fragmentada, destacando cada detalhe. O corpo fragmentado de Mombaça, de certa forma, conflui com as vidas interrompidas e também fragmentadas que ela lista em sua fala, mas ao mesmo tempo o filme nos diz que esse não é o seu lugar, já que ela não cabe por inteiro.
Ao falar de várias outras mulheres, que como o texto diz, escolheram a saída, Jota diz sobre si, mas também sobre inúmeras outras pessoas que compartilham o sentimento de se sentir sem lugar. Me recordo da música “I’m Every Woman”, que diz: eu sou todas as mulheres, está tudo em mim. Vivemos num mundo em que as pessoas experienciam sofrimentos que são coletivos e, ao mesmo tempo, individualizados. Jota Mombaça exprime a coletividade dos sofrimentos de sua vivência como bicha não binária, mas de uma forma bastante intimista, convidando-nos a perceber como ela se sente, não apenas com nossos olhos, mas também com nossos corpos, numa experiência sensorial que o filme evoca. Podendo também nos levar a uma reflexão sobre nós mesmos. E a cada respiro em sua fala, a tela fica preta, como se nossos olhos se fechassem para assimilar tudo que estamos ouvindo.
Após esse desabafo, o nome do filme vem ao som de uma motosserra. O que não tem espaço está em todo lugar. Essas palavras cortam, geram uma fragmentação de seres e de espaços. O céu visto da janela de um avião nos leva a uma viagem cujo destino é estar em todo lugar. A obra dialoga sobre a ausência, enquanto nos enche com imagens amontoadas, que figuram uma presença não espacializada. Em corró, língua falada invertendo a ordem das sílabas de palavras em português, Jota declama um texto de autoria própria. Enquanto imagens borradas de árvores parecem dançar pela tela, ela afirma: Isso é uma dança no fim dos tempos. A diretora evoca o gesto decolonial de idealizar e realizar o fim do mundo como conhecemos, e a existência desse filme, de certa forma nos diz que esse fim já está em curso.
Usando a sobreposição de telas, Jota Mombaça se coloca nos espaços de maneira ubíqua; entre viagens, ela habita todos os lugares. Em uma tela preta, ela diz: “E isto é uma carta para mim. E para você?”. Mais uma vez convocando a presença de quem assiste para dentro do filme, enquanto provoca uma reflexão sobre nossas individualidades. Diferente da melancolia trazida no começo, ao final o filme tem um tom animado, elétrico. Como que performando uma magia, Jota comanda o ritmo do fisting, levando a intimidade do filme para outro patamar, aprofundando, por assim dizer, essa intimidade construída com o espectador. Intimidade essa que agora se mostra de forma mais ousada, e assim como todos assuntos expressos no filme, pode causar incômodo, mas que ainda assim encontram sua maneira de se comunicar com seres individuais exprimindo uma experiência coletiva.
O Que Não Tem Espaço Está Em Todo Lugar é um filme que nos induz a uma meditação a respeito de nós mesmos, nos levando a transcender espacialidades, rompendo a barreira que delimita indivíduos. Com isso, não posso deixar de me questionar: se não sou apenas eu (nem Jota), quem mais não tem espaço? E como fazemos para nos unir em busca de nosso pertencimento nesses diversos lugares?
O que não tem espaço e a existência no entre-lugar.
Guilherme Maia
O corpo (que não tem espaço) em um eterno entre-lugar e suas experiências das mais profundas e angustiantes demarcam “O que não tem espaço está em todo lugar (2020)”, trabalho experimental e frenético da Jota Mombaça. Corpo esse que é preto, de gênero dissidente e que luta por manter viva sua existência.
Reunindo diários de viagens e registros pessoais em uma narrativa não linear, que vai contra quaisquer padrões de formalismo estético e cinematográfico, o filme apresenta a experiência desse corpo em constante fuga, passando de território em território, dentro e fora do Brasil, ao mesmo tempo em que deixa seu rastro de existência por esses espaços, expresso pela própria imagem, sempre manipulada ao máximo que, em momentos, deixa literalmente rastros de movimento, em uma alusão quase fantasmagórica sobre corpos que habitam esse entre lugar; uma experiência que se materializa desde a cena de abertura, que de forma bastante emocional lista uma série nomes de escritoras que cometeram suicídio para logo em seguida, cortar para um plano aéreo, de nuvens vistas por um avião, meio de transporte que dá início ao constante movimento de imigração no curta.
E referenciando essas escritoras logo no primeiro momento, o trabalho de Jota também traça uma linha entre diferentes artes, algo que diz respeito à própria artista, escritora e artista visual. Aqui, a escrita ajuda a construir a ideia de adentrar na intimidade de experiências que às vezes são difíceis de traduzir ou explicar, com um texto poético que mistura diferentes idiomas e legendas na construção de uma linguagem própria, na busca por algo próprio, um lugar próprio que lhe seja possível pertencer.
Entre as imaginações: da lembrança à fuga em “O que não tem espaço está em todo lugar”
wellison silva
Isto é uma crítica. Pretende ser uma crítica cinematográfica. Mas, sobretudo, um exercício de imaginação negro-travesti-radical. E para fazer isso, escaparemos de armadilhas, criando fraturas, pois o desejo é apresentar a abolição. O que não tem espaço está em todo lugar, (2020), de Jota Mombaça, mantém-se longe ou permite distanciar-se da demanda objetiva de linguagem e inaugura outras formas de conceber imagem e som, em um movimento que permite o surgimento de palavras de intitulação como: filme-arte, filme-ensaio, filme-performance, mas antes de tudo, filme. E é nesse sentido que concentra-se o esgotar da imagem e a sonoridade do porvir como cenários de percursos da lembrança e da fuga.
A imaginação aqui concedida move a potência imaginativa radical que nos leva e tira para dentro e fora do filme. Mombaça nos faz lembrar. Enquanto ela está sentada dentro de um quarto, nos locomovemos atentas às memórias daquelas que por uma política de morte tombaram. Ela nos lembra de como nossas memórias deslizam e caem em um poço onde esquecemos que os modos de morrer não estão postos, e sim demarcados. Esse gesto de lembrar daquelas tombadas exaure a imaginação do im/possível, produzida pela colonialidade, tendo o lembrar como memória e vislumbre do amanhã que soa, apesar das violências — ocupação de lugares e espaços como demonstração da presença viva.
Presente em fragmentos, múltiplos quadros e diferentes movimentos, a imagem da Jota Mombaça, como corpo ocupante, tensiona esgotamentos da imagem, projetando o lugar da fuga como um lugar de onipresença. Estar em todos lugares é o que provoca a montagem de Darwin Marinho, justapondo e acentuando imagens-fragmentos que o olhar do espectador não consegue fixar; implica em reduzir as imagens da realizadora em pequenos (e múltiplos) quadros, criando na intimidade e no deboche a maneira como as contradições se acentuam, uma vez que produz materialmente (visivelmente) o “está em todo lugar” pela composição visual; provando também a maneira como operamos numa espacialidade que limita os corpos e a forma como nos organizamos socialmente. Essas tensões nos levam a pensar nas imagens-prints do Instagram da realizadora, que nos convoca a observar os percursos e os lugares de imagens que se destinam às redes sociais, colocadas perante a tela de um outro formato audiovisual.
A presença do som também caminha na direção de uma criação que altera o espaço e suas funções. No desenho do som, Slim Soledad constrói o que Jota Mombaça desenvolve em suas produções intelectuais, tendo a escrita do fim como um lugar de imaginações de novos lugares e mundos. O choro apresenta-se como ato de iniciar e findar a memória. A imagem dentro do avião com o som da serra elétrica parece nos dizer sobre a destruição como possibilidade de trânsito (mudança) e o silêncio nas imagens das cidades como esse lugar inativo ou findado/acabado. O mundo que nos foi tomado precisa acabar e, nesse caminho apocalíptico, as zonas sensoriais-sonoras alteram e representam parte dessa construção de fim. O choro, a serra elétrica, o silêncio, dentre outras performances sonoras, findam e inauguram um acontecimento guiado por frames e registros, que não se esgotam nos limites visíveis (tela) das experiências da presença (viva).
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