Dossiê Corpas Infinitas: descoordenadas para transitar — Rela, de Gyodai (Negro Leo)

Viu&Review
7 min readJun 7, 2023

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Rela | Negro Leo feat. MAY TUTI (reprodução — QTV Selo)

Movimentem-se negres

Letícia Cristina

Um homem dança sobre a estrada de ferro enquanto evoca a presença de seus semelhantes em uma dança de afirmação do ser. Do ser negro. Ser negra. Seres negres.

Na presença do senhor do ferro (ogunhê!), vislumbramos a possibilidade de criar lugares extremamente pretos.

Assim como nas imagens que vemos dos bailes funk dos anos 90, o videoclipe Rela (2022), com música de Negro Leo feat. May Tuti, nos diz que podemos trilhar caminhos que nos levam a espaços nossos. Onde se possa esbanjar melanina sem nenhum pudor, e com toda a resistência do movimento negro,

das negras se movimentando

de negros em movimento.

Relando seus corpos um contra o outro, trocando energias.

De cada movimento dessa dança exala um desejo de união. E mesmo que Américo Tabu dance sozinho, ele também faz parte dessa união. União preta que o fortalece.

Nesse videoclipe dirigido e montado por Gyodai tudo se repete, pois não é suficiente que vejamos apenas uma vez. Precisamos ver, e rever, e ver de novo, e de novo, e seguir revendo até que se fixe em nossos olhos e mentes a imensidão que a negritude carrega.

Ecoa em minha cabeça a voz de Victoria Santa Cruz quando disse:

Negra!

Si

Negra!

Soy

Negra!

Após assistir Rela fica o desejo de que sempre encontremos maneiras de abrir caminhos para criar e perpetuar possibilidades de existências negras, para que possamos viver negro, dançar negro, e movimentar-se negro com a perspectiva de existir plenamente livres e confortaveis em nossa negritude!

Reprodução YouTube

RELA-AÇÃO

Otávio Leite de Assis

Inicia-se uma caminhada na MONTAGEM: GYODAI — desde o princípio. Os planos são amarrados como um cadarço prende o tênis nos pés de quem dança esse swing da música nas imagens do clipe. Vídeos com cortes rápidos constroem duas narrativas visíveis: A PRESENÇA DE AMÉRICO TABU performando uma dança entre trilhos de trem e uma preparação para a ação do baile. Mas, além destas, há também uma terceira narrativa na interação dos planos: a repetição. Cria-se um universo interno quando os planos acrescentam a si mesmos, por meio da imagem repetida posta ao reverso; como um bumerangue. O plano vai e volta para ele mesmo. O tempo se dilata neste movimento. Novos caminhos são abertos por este movimento de ir e vir do indivíduo/coletivo.

Assim como o ato da dança produz um contato íntimo do corpo consigo, o clipe conecta as múltiplas danças num bailar audiovisual de DIREÇÃO: GYODAI. Relacionar-se com o outro corpo nos caminhos proporcionados pela dança, como na junção das IMAGENS: FUNK RIO 1994 e das de LUCAS PIRES. Bailar em ritmo de ascensão na medida em que as luzes se fundem cada vez mais à montagem e enquanto a música de NEGRO LEO FEAT. MAY TUTI cresce no ritmo e na grandiosidade. Unir-se ao baile — fazer parte deste corpo maior que si mesmo — rela no coletivo de uma experiência única; oceânica na imensidão, marítima no vai e vem, diaspórica na construção e negra na completude. RELA — 4’

Reprodução YouTube

Afrofabulações em Rela (2022): novas perspectivas para transitar

Haniel Lucena

Rela (2022), videoclipe dirigido por Gyodai da música de Negro Leo feat. May Tuti, traz para o quadro fílmico elementos estéticos interessantes enquanto formato, performance e manipulação da imagem. Além de escutarmos a música, é possível perceber que existe um trabalho de articulação das imagens que não somente acompanha a trilha musical, mas recria os espaços por onde os corpos negros circulam. Rela carrega consigo uma carga poética de percursos, caminhos e trajetórias através de encruzilhadas reais e também imaginárias.

Assumindo o vídeo como linguagem, a obra provoca um certo embaralhamento de tempo através da montagem que rearticula os frames através de várias modificações. Seja pelo uso do recurso jump cut, provocando os curtos saltos de movimento, como também pelos diversos reverses. A utilização de tais ferramentas de edição faz com o que o quadro acompanhe melhor a música no sentido de ritmo como também evoque uma dimensão de um tempo pendular, que vai e que volta.

Um aspecto bem interessante deste trabalho é o uso das imagens de arquivo retiradas de um baile funk do Rio de Janeiro em 1994. O uso deste material enriquece o videoclipe sobretudo quando refletimos sobre noções implicadas na territorialidade. Os espaços que os corpos negros ocupam, o ambiente do baile funk e a manifestação da dança pop nos subúrbios da cidade nos leva a refletir sobre questões raciais implícitas a esse recorte. A performance de Américo Tabu casa muito bem com as imagens de arquivo por expandir esses questionamentos e nos levar para outros caminhos.

A visualidade construída no figurino de Américo pode nos remeter a Exu, principalmente se analisarmos pensando nos trilhos. O conceito de trajetos, escolhas e tempo está presente na obra assim como a ancestralidade seja através do corpo ou do som. A composição da música traz consigo aspectos da musicalidade negra, que mais uma vez amplia os sentidos do clipe. O uso de elementos percussivos na sequência final ainda é acrescida de batuques muito próximos ao maracatu, sobretudo à canção Maracatu Atômico, de Chico Science. Rela projeta uma fabulação afrofuturista a partir das assimilações entre imagem, música e montagem.

Reprodução YouTube

Uma coreografia preta desafia o vazio

Gabriel de Sousa

A linha de trem curva leva-me até um baile funk (1994). Logo a vida transmuta-se num bailado ininterrupto. Na encruza habita um bonito tom avermelhado. A coreografia preta flutua, sobretudo como elemento plástico em meio a polifonia da sonoridade. De súbito, diante desse formato concentrado e enxuto, noto na imagem algo que me desperta o olhar. Nela vejo um grupo de jovens fora de quadro e, entre eles, uma moça esboça um sorriso (cerzindo a mise-en-scène cênica). A música acaricia todos os recantos dos seus olhos; seus cotovelos estão levemente dobrados, e uma camada de luz tênue desenha inteiramente a imagem. Só então noto que a luminosidade se espalha por todo lado. O seu torso move-se gracioso, os cílios cerrados e uniformes, as omoplatas dançam ao ritmo da música.

Evidentemente, o videoclipe “Rela” feat. MAY TUTI (2022), de Negro Leo, dirigido por Gyodai, é coreografado na dança preta. No mais, o corpo preto agita-se expandindo, sacudindo o quadril, o quadro. O movimento do torso acaricia cada vértebra. A energia preta vibra incessantemente na tela. O que acontece quando a pretitude aciona a energia do corpo? A vida excede no videoclipe Rela. Como pensar a experiência do corpo preto com essa energia excedente? Como pensar a experiência do corpo com esse lirismo excedente? O que significa esse gesto do corpo que vai na direção do excesso? Em outras palavras: um acorde plástico num óleo de Heitor dos Prazeres, uma pilhéria de Zezé Motta, esse momento em que o corpo preto lança voo e ganha aspectos mais agudos: um lirismo excedente. Ora, a dança preta é movente, é cinética, o corpo desenha no espaço.

De modo geral, porém, a montagem articula à mise-en-scène o que denominarei de tempo pendular. Vejamos pois com mais vagar esse pêndulo no videoclipe. O gesto pendular se incorpora ao videoclipe como elemento de sua estrutura. Desse gesto emerge a repetição, o vaivém, o avanço e o recuo, a retroação e a prospecção, a contração e a descontração, a expansão e a contenção. Desta forma, o tempo como responso, o tempo vai para trás e para frente, vai e volta, ou seja, constitui uma coreografia de retornos. Neste caso, temos o espaço-tempo como binômio. Como aglutinar as temporalidades na montagem? Como grafar a memória do tempo no corpo? Desse modo, lembro do “aforismo kigongo “Ma’kwenda! Ma’kwisa!”: “o que se passa agora retornará’’. Aliás, como pensar a composição da imagem nesse videoclipe? Em geral, muito clara ou muito escura. Como pensar os grãos na imagem evidenciando a sua textura? Como pensar os elementos como o clarão que aparecem constantemente cortando a imagem ou entrando no meio dela?

Outra coisa: uma parte das imagens é captada especificamente para o clipe e a outra retirada de arquivo. E, simultaneamente, nessa composição, nessa coreografia, nessa montagem ágil e sincopada, nesse vaivém, o “corpo desafia o vazio”, a síncopa, batida que falta, “é a ausência no compasso de marcação de um tempo (fraco) que, no entanto, repercute noutro mais forte. (…) De fato, tanto no jazz quanto no samba, atua de modo especial a síncopa, incitando o ouvinte a preencher o tempo vazio com a marcação temporal — palmas, meneios, balanços, dança. É o corpo que também falta — no apelo da síncopa. Sua força magnética (…) vem do impulso (provocado pelo vazio rítmico) de se completar a ausência do tempo com a dinâmica do movimento no espaço”. (Leda Maria Martins, em Performance do tempo espiralar, p. 83)

Como tal, bordando visualmente um retrós, um novelo, como a fotografia “Rio Baile Funk” (2006), de Vincent Rosenblatt, os jovens dançam agrupados como uma partitura da cadência, seus corpos no baile funk se fundem, desta forma, o movimento coreográfico ocupa o espaço anunciando uma resposta coletiva. “Como corpos em movimento são capazes de coreografar o possível, dentro do impossível?”. Há um “campo gravitacional”, um ar-de-família entre o videoclipe “Rela” e o marcante início de “Beau Travail” (1999), de Claire Denis; ou “Como dança São Paulo” (1991), de Aloysio Raulino, ou ainda, “Pretoperitamar, o caminho que vai dar aqui”, de Anelis Assumpção. A alegria, é a de reencontrar aqui, neste breve inventário, a lembrança ou a presença de dois filmes e uma peça que amo.

Reprodução YouTube

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