Dossiê Corpas Infinitas: descoordenadas para transitar — A Cambonagem e o Incêndio Inevitável, de Castiel Vitorino

Viu&Review
8 min readJun 7, 2023

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A Cambonagem e o Incêndio Inevitável | Castiel Vitorino (reprodução — Almeida & Dale Galeria de Arte)

A chama que abre caminhos e incendeia liberdade

Sheila M Santana

A liberdade é um dos maiores desejos da humanidade. Em A Cambonagem e o Incêndio Inevitável (2020), de Castiel Vitorino Brasileiro, esse desejo é realizado. Na primeira cena, quando o primeiro e único diálogo do filme é estabelecido, os amantes conversam sobre seus desejos, enquanto Rodrigo Jesus quer “acreditar na liberdade”, Castiel deseja morrer incendiada.

O que parece apenas uma paixão avassaladora, transforma-se em algo maior. É através do desejo que o filme constrói seu caminho em um ritual, que possui seu próprio ritmo, levando o espectador a um transe ritualístico. Esse feito é alcançado por meio da maestria com que a diretora conduz o olhar do espectador.

A fotografia estática faz com que o espectador vasculhe a imagem, todos os cantos, cores, texturas, tudo muito perceptível, e para além disso mostra o cuidado que a Castiel teve em pensar os planos, todos simétricos e com profundidade. Isso torna a experiência ainda mais vívida, uma imagem que chega e fixa na mente através de seus elementos.

Como falar de liberdade e desejo sem falar de Exu? Com uma performance intensa, o tempo inteiro aquele que abre caminho está presente, Laroyê, Exu! Castiel traz a energia deste Orixá, através do vermelho, do fogo, da arte, do som, da fotografia e da performance. O corpo que se move em um rito mostra como o desejo carnal também é sagrado e, sendo assim, é exaltado para cultuar aquele que o move.

Na umbanda, cambono ou cambone é a pessoa responsável por cuidar do médium e do orixá. O filme mostra esse processo através da relação do Rodrigo Jesus com a Castiel nas cenas do ritual. O fogo e o cunho sexual de algumas cenas mostram a força e expressão do corpo, que ocupa o espaço e permanece visível. A Cambonagem e o Incêndio Inevitável encena um culto, no qual o desejo de Castiel é realizado. E assim seguimos em busca de novos incêndios e caminhos.

Reprodução YouTube

INCENDIEI-ME, CAMBONO

Otávio Leite de Assis

A cambonagem e o incêndio inevitável (2020), de Castiel Vitorino Brasileiro, arremessa espectadores num processo subjetivo de reflexão sobre as potencialidades do cinema radical negro, ao abordar uma estética macumbeira nos longos planos performáticos e na sonoridade hipnotizante dos tambores, sussurros e orações; além de ser totalmente constituído por corpos e corpas de pessoas negras. A construção de uma narrativa expositiva e hegemônica é totalmente aniquilada já na primeira cena, na qual cada personagem expressa seus desejos maiorais. Uma quer acreditar na liberdade, já a outra:

Eu quero morrer.

Quero morrer incendiada.

Então, a construção técnico-artística do transe audiovisual de Vitorino se inicia após o longo beijo entre os personagens e a exibição do título. Agora, a performance é o que sustenta a imagem. Neste transe já iniciado, o som de sussurros amalgamados ao barulho da madrugada agita ainda mais o espetáculo principal. A presença de Exu é invocada na subjetividade do filme pela voz que está no espaço imaginário.

Madrugada ê

Laroyê Exu

O mistério acerca dos desejos de cada personagem fica, durante todo o filme, sem solução explícita para além do processo ritualístico retratado pelos planos e trilhas sonoras. Entretanto, diversos elementos apresentados, tais como a lenta dança da corpa, que balança como o fogo aceso durante o decorrer do filme, ou mesmo a ignição do cambono na escultura produzida por Castiel Vitorino, agregam outras inúmeras interpretações possíveis para os anseios destes corpos em tela.

Ao som do berimbau, tambor e do canto, o incêndio se apresenta na sua forma física de fogo enquanto a dança da personagem a posiciona como meio para que esta luz brilhe e, de alguma forma, a complete. Se antes a corpa ainda estava presa a um mundo realista, agora ela entra ainda mais no campo da cosmovisão apresentada. Não há mais quintal. Enquanto este fogo está em cena, qualquer parte da floresta serve de cenário. Qualquer parte do mundo pode ser incendiada por esta performance. E assim, a corpa dança abaixo, acima e nivelada ao fogo; dança no chão, dança no ar; toca tambor; observa a queima; vira o próprio fogo; se transforma no próprio sacrifício.

Mas, para incendiar, é necessário combustível, e o combustível acaba no final do ritual. De volta ao ambiente caseiro, o penúltimo plano demonstra as várias tentativas da corpa em aprender com os últimos momentos do incêndio, até que um resultado já esperado ocorra: o fogo se transforma numa pequena brasa esfumaçada.

Assim como a personagem, ainda brilha, ainda existe, mas agora não é mais como era antes. Não balança suas chamas, muito menos suas pernas dançam. Somente seu olhar atento pode ver, na penumbra da brasa, ou no caminho da fumaça, que, no final do incêndio, Exu só protege a quem lhe oferece sacrifícios.

Reprodução YouTube

Dançando em chamas: um transe com Castiel Vitorino

Dante Gabriel

O filme A Cambonagem e o Incêndio Inevitável (2020), de Castiel Vitorino Brasileiro, traz à tona a relação intrínseca entre o movimento do corpo humano e o movimento do fogo. Logo de início é verbalizada sua vontade de incendiar a si mesma e, ao longo do filme, o espectador é levado a um transe que acompanha este desejo da autora. Toda a composição da linguagem deste filme relaciona a natureza com o corpo humano de maneira metafórica, utilizando planos longos e uma trilha sonora bem sutil que conduz todo o movimento.

A vontade do corpo de Castiel de se tornar um só com o fogo se funde com o canto de Padilha, o que, junto dos cenários que observamos nas cenas, transporta o espectador para a dimensão do transe no qual ela se encontra. Essa dimensão difere do que se é visto como uma linguagem convencional, algo que a artista sempre procura transgredir. Apesar disso distanciar uma parte do público, não haveria outra maneira de exprimir este desejo em tela. Com isso, a dança e a cambonagem são as formas utilizadas para expressar a aspiração de incendiar-se e de tornar-se parte de algo maior, algo além do que a sociedade branca e cis-heteronormativa constitui como corpo ou como ser.

É através de planos longos e contemplativos que observamos a relação entre o corpo de Castiel com o fogo e com a natureza ao seu redor, o que pode ser visto como uma metáfora para a vida em si. Assim como o fogo, a vida é imprevisível e incerta, e a única certeza que temos é a inevitabilidade da mudança e da transformação. O corpo humano, por sua vez, é o meio pelo qual podemos experimentar e explorar essa imprevisibilidade, por meio de movimentos que se assemelham (ou não) à labareda do fogo, para além do “humano”. Ainda é importante ressaltar a importância de toda essa construção ser feita ao redor de um corpo dissidente como o de Castiel.

Em suma, o filme A Cambonagem e o Incêndio Inevitável coloca o espectador em um transe por meio do uso de uma linguagem bem única de sua autora, que se aproxima da vídeo-performance com sua maneira singular, assim como vários de seus trabalhos. Através da dança, da cambonagem e do sacrifício, é expressa a vontade de transcender os limites impostos pela sociedade e de se conectar com algo além. Ao mesmo tempo, Castiel convida o espectador a se envolver com o ritual por todo o filme, estabelecendo este convite de maneira mais direta no final do filme, ao andar em direção a câmera.

Reprodução YouTube

Incendiando Convenções: A Poética Rebelde de ‘A Cambonagem e o Incêndio Inevitável”

Marcela Dias

A cambonagem e o incêndio inevitável (2020), de Castiel Vitorino Brasileiro, já nos conta a origem e destino do filme em seu título. A concisão dos planos nos leva a caminhar e dialogar com a narrativa e a ambição central da obra. Isso porque, com um único diálogo, uma mensagem é contada, narrada, exibida e ouvida sem que saibamos por quem ou de onde explicitamente se remete e se planta o anseio da descoberta a quem e como se destina. A demanda inicial do desejo incendiário de si mesma, que é almejado logo no início da obra, recebe sua oferta dos elementos que compõem os planos juntamente com Castiel. Nas chamas, na terra e na própria floresta, constrói-se o habitar e uma linha tênue paira entre o equilíbrio de um corpo que, radicalmente, queima. Os movimentos de um se escapam só para se espelhar no outro, o que produz uma balança que se equilibra em um único espaço, sendo inevitável a não compreensão da metáfora de que são uma unidade. O fogo, a priori, se apresenta como purificação, e por mais instável que seja, ele está sempre próximo ao chão, seja da própria terra como elemento, numa casa ou no terreiro.

A similaridade dos planos iniciais construída a partir de um posicionamento imagético e fílmico marginal consegue manter coesão trazendo-os inicialmente mais abertos, e posteriormente, mais fechados, explorando a intimidade que Castiel constrói com o fogo. Este, que por sua vez, parece se apresentar como um conceito amplo, pois dança e assume um ritmo que acompanha e se iguala a ela, imergindo o espectador na profundidade de uma experiência muito rica e bem explorada: o incendiar. Por mais estendidos que sejam os planos, eles ainda causam choque a cada corte. É uma coreografia nada previsível e por isso, inusitada, o que atiça uma busca mais densa e focada nos elementos visuais implícitos que compõem os longos planos fixos e conectam com quem assiste a obra. Tudo isso só se intensifica quando somado a sonoplastia imprevisível e ambígua que, em uma memorável dupla, faz o parto de um universo visual e sonoro que rememora uma nova espiritualidade.

Além disso, também é plausível e indispensável pensar na dimensão metafórica como renascimento mediante a denúncia. Castiel por meio de símbolos mostra como um corpo dissidente em chamas neste país, hoje, estimula o arrepio, calafrio e, indispensavelmente, a revolta, dado que não permeia apenas a ficção. Nesta obra, o corpo reclama um incêndio individual não para mobilizar a barbárie do extermínio, e sim buscando seu atravessamento radical no mundo só pela sua existência, mediante o corte de lâmina vermelha, pelo beijo da chama que não cauteriza. Afinal, é sabido, Exu só protege a quem lhe oferece sacrifícios.

Reprodução YouTube

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