Como transplantar fronteiras, sem milagres, Princesa do Meu Lugar?
Por: Lina Cirino
O plano que inaugura Princesa do meu Lugar (2020) ambientaliza o espectador: numa viela, no bairro Guamá, em Belém do Pará, duas crianças jogam futebol nas linhas imaginárias de um campo circunscrito por chão acimentado que delimita um espaço liminar entre o dentro e fora de casas geminadas. As traves são havaianas — por onde atravessa a bola… e é um lindo gol que engatilha o corte.
O som diegético — um reggae massinha — funde o primeiro e o segundo plano, aproximando mais ainda esse entrelugar (onde começa e termina a rua? a porta está sempre aberta). A câmera, agora, registra o interior da casa, num plano médio, que torna visível (e ainda mais audível) de onde vem o som. Um homem entra carregando uma bicicleta nos braços e se dirige a um quarto cheio de instrumentos de percussão — momento em que um cartaz cai da parede. E o close mata nossa curiosidade: trata-se de um memorando repleto de fotos que anunciam o porvir.
Somos agraciados com a performance de uma bela senhora que faz da sala o seu palco: dança e canta, com entusiasmo e vigor, os versos marchetados numa melodia paraense:
Princesa,
Princesa,
Princesa do meu lugar
Eu digo e tenho certeza
Que ontem mesmo eu vim de lá
Eu cheguei de manhã cedo
Aqui em Belém do Pará
Meus patrões tão me esperando
Eu não posso demorar
E eu cheguei pra trabalhar
Senão eu saio de lá
Emprego tá difícil
Tá difícil para arrumar
Andei, andei, andei
e não encontrei
Andei, andei, andei
e não encontrei
É migração que fala?
Quando o assunto é migração, o imaginário coletivo associa, de imediato, as que foram realizadas do Nordeste ao Sudeste (vide a capa xenofóbica da Veja São Paulo, em janeiro de 2021). Às vezes nos esquecemos que a migração ocorreu de forma intensa também entre o Nordeste e Norte do país, decorrente do boom do látex. Por exemplo, entre 1889 e 1926, o Pará experienciou a chegada de um número significativo de migrantes nordestinos, sobretudo cearenses, movidos pelo prometimento da economia da borracha.
Os Maranhenses também foram seduzidos pelo boom da exploração gomífera. Atravessaram a fronteira do estado vizinho (Pará) em dois momentos históricos específicos: final do século XIX — quando outros milhares de nordestinos também foram atraídos pela promessa do trabalho em seringais no Pará — e na década de setenta do século XX, devido a construção da Transamazônica e projetos agrícolas. A migração de maranhenses especificamente para Belém é resultado de tensões rurais, o que incentivou o êxodo de muitos camponeses “em busca de uma vida melhor”: um complexo processo de perdas e ganhos e de hibridações de suas identidades culturais.
Atualmente vivem mais de 500 mil maranhenses espalhados pelo Pará, muitos deles em Belém, e o bairro do Guamá (onde parte do curta foi filmado) tem a maior concentração de migrantes maranhenses negros. O que há é uma intensa relação de mobilidade espacial e interação em rede, que interliga identidades étnicas-culturais entre maranhenses e paraenses.
Á título de exemplo: O boi-bumbá. Ou bumba-meu-boi?
O intento desses migrantes era melhores condições de trabalho, e quando se depararam com a exaustão do labor, momentos de festa eram fundamentais nos seus cotidianos, onde extravasavam sentimentos — saudosismo, gentileza, troca, amizade — por meio da música e da dança, evocando memórias que os fortaleciam por meio dos laços identitários limiares entre os lugares de origem e de chegada. Estas práticas culturais apresentavam estéticas e linguagens polissêmicas que dialogavam com rastros étnicos-raciais dos velhos e novos habitantes da cidade.
As primeiras expressões dos Bois bumbá, no Pará, surgiram na metade do século XIX, e consistia, em termos estéticos, numa comédia satírica — um teatro popular, dançado, cantado, performado. A festa do Boi Bumbá tem um sentido simbólico — extravasar sensações, habilidades, aptidões — uma manifestação que desvela diversos hibridismos e sincretismos que sucedeu a história nacional e regional. Os festejos ocorriam nos subúrbios de Belém, posteriormente identificados como território de preservação de cultura ancestral e popular.
Os grupos de Bois bumbá geralmente são articulados nos festejos juninos, em celebração aos santos católicos — São João, Santo Antônio e São Pedro — mas destaco o sincretismo nesta intenção, tendo em vista que a ênfase da festa é celebrar raízes africanas e indígenas. Veremos.
Já o bumba-meu-boi é uma festa que ocorre em São Luís, no Maranhão, desde o século XVIII, nos meses de junho e julho, em comemoração aos referidos santos católicos. A UNESCO, em 2019, declarou o bumba-meu-boi do Maranhão como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Achei chic.
Reza a lenda que
A escravizada Catirina teve um desejo um tanto quanto peculiar durante a sua gravidez: comer língua de boi. Seu marido Chico vai em busca do tal boi, que havia desaparecido. Quando finalmente encontrado e morto, o dono da fazenda se deu conta do sumiço do animal, se retou e mandou prender Chico. Ele, que não nasceu ontem, com ajuda de orixás e pajés, ressuscita o boi, e todo mundo festejou o milagre.
E o que isso tem a ver com o filme?
Calma, eu vou chegar lá.
Depois da encantadora performance com a música que também é título deste instigante documentário, acompanhamos a transição casa-terreiro. Maranhenses se deslocam para a Comunidade Bacabeira, em Mosqueiro, lá no Pará, para celebrar o último dia da festa para o Caboclo Cearense realizada por Mãe Lourdes: o festejo da morte do Boi.
Dentro do barracão, em frente a um altar, uma senhora negra toca tambor enquanto canta, evoca, celebra. Algumas mulheres dançam, no meio do terreiro, segurando uma bandeira branca. No altar, aboletada numa moldura dourada — uma imagem de São João (Batista) — santo que batizou Cristo nas margens do rio Jordão, inclusive. Uma vela branca acesa ilumina São João, amarrado em fitas e terços. É a única luz da Tenda Caboclo Cearense. Fico aqui imaginando o desafio que foi para Pablo Monteiro, que assina a fotografia e direção do documentário, registrar essa sequência.
Ao lado de São João, outro ícone: São Benedito carregando no colo o menino Jesus. São Benedito é o santo (negro) mais devotado no Maranhão — o protagonista da Festa do Divino Espírito Santo. Enquanto as mulheres dançam pelo terreiro, segurando suas bandeiras, em movimentos voltados ao altar, ao som de batuques e cantorias, o sentimento que me abarrotou não sei se tem nome, mas tem a ver com sincretismo, hibridismo, entrelugar e resistência. Práticas, sons, danças e gestos de religiões de matriz africana cultuam imagens de santos do catolicismo: Ossaim como São Benedito, Xangô como São João. Finda a dança, em volta do mesmo altar, outra louvação invade a tela: homens e mulheres fantasiadas, mascaradas, com apitos, tambores, bandeiras, cocás… ao som dos versos cantados por Zé Prazeres
Celebram o boi ressuscitado.
O curta traz à tona diversas facetas do hibridismo e de conexões que perpassam liminaridades que atravessam as relações de colonialidade: da migração dos nordestinos ao Norte, que saíram de seu lugar em busca de melhores condições de vida — e que encontraram, no lugar de chegada, movimentos culturais simbólicos que cultuam semelhantes memórias entrelaçadas por meio dos seus vínculos identitários ancestrais. Como o bumba-meu-boi ou boi-bumbá — um signo de resistência negra revestido de “milagre”, e que atravessou fronteiras de tempo e espaço, por meio do sincretismo, para continuar existindo.