Carrie, a Estranha — O terror de uma sociedade defasada por suas crenças bizarras

Viu&Review
7 min readSep 11, 2021

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Por: Andre Malta

Já faz algum tempo que planejo ler algum livro de Stephen King. Resolvi seguir a dica dos fãs e ler suas obras na ordem cronológica de publicação, sendo este, portanto, o primeiro livro que li do aclamado autor.

Conheci “Carrie, a Estranha” através de sua primeira adaptação cinematográfica e curti bastante a história. O legado da obra não para de crescer: de lá pra cá, já foram feitos filmes, musicais e uma infinidade de referências nos mais diferentes tipos de mídia. É essa força que a obra carrega através das gerações que sempre me chamou a atenção.

Essa força é uma qualidade comum aos clássicos.

Sissy Spacek arrebenta nessa cena antológica

No entanto, curiosamente, muitos fãs de King alegam que “Carrie, a Estranha” está muito “aquém” de suas melhores obras, ideia essa endossada pelo próprio King que a definiu como um trabalho “cru”.

Diante disso, unindo a vontade de me aventurar nas obras do autor com a curiosidade em entender o que deu início a popularidade de Carrie, resolvi ler a obra e identificar como se sustenta o forte legado que a transformou num verdadeiro clássico.

A história já deve ser conhecida por muitos: a garota socialmente inepta que é constantemente humilhada pelos colegas e oprimida pela mãe fundamentalista, aceita vivenciar seu conto de fadas pessoal, mas acaba sendo levada para uma armadilha que a faz explodir de fúria e revelar seus poderes telecinéticos e telepáticos numa rede de destruição.

Agora pare e pense: Se retirarmos o elemento ficcional da telecinese, quantas vezes já não nos deparamos com um personagem (ou pessoa) como Carrie? E se incluirmos este elemento a discussão, quantas vezes já não fomos brindados na ficção com mais um “pária social” dotado de poderes psíquicos?

Melhor não mexer com essa galera…

Se você não conseguiu pensar em nenhum personagem que se encaixe nesse perfil, tudo bem. Não é obrigado a ter visto ou a lembrar. Mas se você, assim como eu, lembrou-se de algo, penso que concorde ser difícil não fazer uma correlação com a Carrie White, de Stephen King.

No prefácio desta edição, King revela que criou Carrie White misturando a ideia da telecinese às memórias de duas colegas que teve: a primeira, uma constante vítima de bullying; e a segunda, uma garota epiléptica filha de uma mãe fundamentalista.

Constata-se dessa forma, que o modo como King abordou a telecinese pode ter muito do universo fantástico de sua mente, mas a prática de agressão e intimidação sofrida por Carrie é um traço perverso e comum da sociedade guardado em suas memórias. Possivelmente o livro serviu de espelho para que o leitor se reconhecesse no que lia, tenha ele sofrido, presenciado ou feito sofrer deste mal.

Este pode ser o primeiro motivo da popularização da obra. O livro aborda exemplos e situações que tanto ontem, quanto hoje, continuam sendo familiares ao senso comum. A real força desta história é que ela trabalha com arquétipos e temáticas extremamente eficientes em fazer o público se sentir representado e familiarizado com aquela situação, mesmo que esta seja ornada de fenômenos fantasiosos.

Por trás de uma história de terror e drama adolescente, estamos diante de uma narrativa que aborda temas como o bullying e o amadurecimento pelo prisma feminino, dando forma aos seus conflitos e abordando tanto o tornar-se mulher quanto o seu lugar na sociedade.

Um dos bailes mais icônicos de todos os tempos…

A trama é narrada de forma epistolar e não linear transformando “o baile” em seu ponto chave. A alternância entre a narrativa em prosa e os trechos epistolares que transcrevem a investigação e os testemunhos dos que vivenciaram os incidentes, pode até ter alimentado o suspense e estimulado a expectativa para o momento clímax, mas também incomodou pela quebra da imersão na transição entre uma forma de narrar para outra.

Ao menos até chegarmos aos acontecimentos do baile. Neste ponto, esta forma de trabalhar o enredo ganhou força e organicidade. Os depoimentos das personagens tornaram todo o evento mais crível. Créditos para os ótimos diálogos redigidos por King.

As personagens em Carrie reforçam o protagonismo feminino na história, dando forma e conteúdo à obra. Os dois únicos personagens masculinos de maior destaque aparecem na figura de Tommy Ross e Billy Nolan e, mesmo assim, ainda que com funções importantes para o desenvolvimento da narrativa, ambos os personagens parecem trabalhar em função das suas respectivas parceiras, Sue Snell e Chris Hargensen.

Pobres porquinhos…

Carrie White, a personagem-título do livro, é uma verdadeira pária em sua cidade. Oprimida e sem o apoio da própria mãe, Margareth White, Carrie é constantemente humilhada e ridicularizada. Uma bomba relógio prestes a explodir. É fácil torcermos por ela, pois mesmo quando questionamos suas atitudes após os eventos do baile, nós a compreendemos. Lá no fundo, tudo o que Carrie parece querer é ser aceita.

Há quem questione como uma garota na idade dela nunca tivesse ouvido falar na menarca. A sensação que passa é a de que existe um “furo” na história ou ao menos que nesse ponto o autor abusou da suspensão de descrença do leitor. Não sei dizer como funciona lá nos EUA, ou mesmo como era na década de 70, mas fato é que mesmo tendo a ignorância alimentada pelo obscurantismo religioso da mãe, fica difícil acreditar que Carrie não tivesse condições de saber do que se tratava através do colégio.

No entanto, se este é um evento questionável, também fornece um poderoso “signo” da feminilidade e do processo de amadurecimento: o tornar-se mulher. Sobre este contexto, a escolha por trabalhar a mente feminina pode até ter vindo de King, mas a sensibilidade necessária para o desafio de escrever Carrie, deve-se provavelmente à esposa do autor, Tabatha King.

“Se eles soubessem que ela tinha o poder.”

Aliás, no prefácio desta edição, Stephen King conta que ela o incentivou a continuar escrevendo a história após o mesmo desistir e jogar as três primeiras páginas no lixo. O autor não gostou do que havia escrito. Talvez porque lhe faltasse a sensibilidade necessária pra perceber o potencial do que tinha em mãos. Possivelmente a sensibilidade de uma mulher. Ou, sendo mais sensato, a opinião de uma.

Dessa forma, se “Carrie, a Estranha” é sobre uma garota que sofre bullying, King ambienta a história pelo prisma feminino nos fazendo ver como trabalha o bullying na vida de uma garota. Para isso, ele nos apresenta no decorrer da narrativa, o ponto de vista da vítima, das opressoras, e das testemunhas, todas mulheres, para construir em sua primeira publicação uma trama genuinamente dotada de um olhar feminino, mesmo tendo sido escrita por um homem. E talvez, este seja o segundo motivo pelo qual Carrie é uma obra tão icônica: o público feminino foi um alvo certeiro.

“(…) Carrie, Carrie, things they change my friend
Carrie, Carrie, maybe we’ll meet again …”

Por não ser o meu lugar de fala, não consigo julgar o quão assertivo o autor tenha sido em sua abordagem, mas acredito que o saldo possa ser positivo.

Signos é o que não faltam para serem analisados: como já citado, a menarca aponta a perda da inocência, o tornar-se mulher; há também as reminiscências da mente de uma jovem no limiar para fase adulta, suas ambições, suas preocupações, suas inseguranças; aborda-se além disso o despreparo em ser mãe, os efeitos e os desafios da ausência paterna, o conflito moral de se negar a maternidade; assim como o lugar da mulher na sociedade, a opressão do fundamentalismo religioso na forma como a mulher se veste, se expressa e se comporta; ou mesmo uma possível metáfora sobre o medo que a sociedade patriarcal tem do que uma mulher com poderes é capaz de fazer quando se sente oprimida.

Dito isto, chego a conclusão de que gostei muito de “Carrie, a Estranha”. Olhando o quadro todo é basicamente sobre o terror de uma sociedade defasada por suas crenças bizarras. Sejam estas crenças a banalização do bullying, o fundamentalismo religioso, ou a preservação de um status quo onde o lugar da mulher está sempre em desvalia, pelo medo que causa a sua ascensão.

Sangue no olho…

Ainda assim, mesmo reconhecendo a força de seu conteúdo e o poder do que é trabalhado em sua história, devo concordar com o próprio autor e afirmar que ela carecia de um melhor acabamento na forma como foi exposto.

Isso ficou muito mais evidente após eu começar a ler o segundo livro do autor, aqui no Brasil intitulado de “Salém” (ou “A Hora do Vampiro”), e notar que a diferença de qualidade na escrita é absurda! Se aqui já era bom, em “Salém” está excelente!

E isso me leva a afirmar que “Carrie, a Estranha” parece sim ter saído um pouco antes do ponto certo. Talvez tão “incompleta” quanto o autor era no debute de seu primeiro livro. E está tudo bem. Pois foi o suficiente para catapultar sua carreira e nos entregar uma história memorável.

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