BANANA FISH e a inexistência de obras perfeitas
por Barbára Carvalho
BANANA FISH é um daquelas obras que te desafiam e instigam a termina-las até o final, com um enredo muito bem construído e personagens complexos e cativantes nos vemos preso aos seus 24 episódios em uma espiral de temas sombrios e deturpados que rondam as gangues de rua e máfia que circulam por Nova York. Escrita por Akimi Yoshida e lançada entre 1985 e 1994, a serie acompanha Ash Lynx em sua jornada de sobrevivência no submundo de crime em meio as máfias, enquanto tenta manter seu posto de respeito entre seus companheiros e descobrir a correlação entre banana fish e o estado vegetativo de seu irmão veterano ao retornar da guerra.
Essa é uma descrição que passa longe da maioria das expectativas dos leitores ao se deparar com a caracterização de shoujo que a serie carrega. Publicado em dezenove volumes pela revista shoujo Betsucomi, antes mesmo de avançamos sobre seu conteúdo é preciso entender um pouco sobre o mercado de publicação japonês e como o mercado exterior especificamente recebe essas obras, uma vez que essas expectativas criada pelo público são parte do que fazem esse manga um clássico tão singular da década de 80.
Com uma grande oferta e um grande afluxo de artistas procurando publicar suas obras, o mercado editorial japonês é dividido em revistas separadas pelo interesse demográfico de cada público. Dessa forma temos as divisões com alguns termos já conhecidos pela comunidade internacional, os Shonen focados no público jovem masculino, os Shoujo focado em um publico jovem feminino, ou ainda seu respectivos mais adultos os Seinens e Josei. Diferente de como importamos esse termo, essas revistas são separadas pelas mais diversas temáticas, de forma que temos terror, ação, aventura ou fantasia escritas “para meninas” e “para meninos” e sendo diferenciados basicamente pela forma como tais histórias são escritas visando dialogar diretamente com seu público especifico e não por seu conteúdo
Dependendo da performance de vendas e atenção recebida por cada história ou mangaka em particular, essas publicações ganham suas versões encadernadas que são como ordinariamente o mercado exterior as recebe e comercializa. Por conta dessa distancia entre o inicio de sua produção e sua ascensão as prateleiras do mundo quando já bem estabelecidas, a comunidade exterior se acostumou com certo perfil de obras sob cada selo. Shonen passou a ser associado a animes de ação com arcos de lutas específicos e protagonismo masculino, enquanto Shoujo estava mais associado a animes colegial de dia a dia ou ainda ao arquétipo de animes de garota mágica.
Além de lançado em uma revista shoujo, BANANA FISH é ainda classificado como Yaoi que é o segmento BL (boys love) ou MLM (male loves male) mais focado em um público feminino que foca principalmente no desenvolvimento de relacionamentos entre dois homens, normalmente em um estilo de romance bem idealizado.
Desse modo antes mesmo de seu desenvolvimento, BANANA FISH já é recebido com expectativas sobre o desenvolvimento não apenas da história como também do que aparenta ser o casal que a protagoniza Tal expectativa e surpresa não se restringiu apenas a seu lançamento, quando o manga alcançou muito além de seu foco demográfico, como também em seu relançamento em forma de anime ainda pega muitos novos expectadores atraídos pelo visual dos protagonistas ou pelas extrapolações em torno deles criadas dentro do fandom. Apesar de mostrar um desenvolvimento de personagens, relações e conflitos característicos de soujo clássicos, o anime segue por um caminho muito mais violento, repleto de perseguições, tiroteios, mortes e ação.
Dentro desse contexto somos levados a acreditar e torcer por um desenvolvimento romântico entre seus protagonistas principais, Ash e Enji são como reflexos opostos de si mesmos, de contextos completamente diferentes encontram um no outro um porto de segurança para sobreviver as suas inseguranças e traumas. Existe uma construção de amor sem sombra de dúvidas, mas o anime não o torna explicitamente romântico. Como muitas de outras obras do gênero a tensão é apenas o suficiente para que os expectadores projetem suas próprias expectativas construindo-os como casal.
Não que isso seja necessariamente um problema uma vez que um desenvolvimento romântico dentro do contexto que os cerca seria praticamente impossível. Por conta de seu traumático passado tendo sido submetido a diversos abusos, são diversos os momentos em que a história nos apresenta que Ash não teve espaço para o desenvolvimento de uma noção saudável de sexualidade e afeto. Muito embora acompanhados de um tom inapropriado de comedia, vemos em diversas situações como o uso de seu corpo é utilizado como uma espécie armadilha potente de sedução para sua sobrevivência ou escape para situações complicadas, quase como um último recurso.
A problemática começa, no entanto, quando em uma analise um pouco mais profunda percebemos que em nenhum momento ou com nenhum outro personagem é mencionado qualquer indicativo direto de não heterossexualidade, enquanto, muito pelo contrário, o anime mantêm do texto antiquado original associando homossexualidade com pedofilia ou algo nocivo e doentio. São diversos os momentos em que a palavra “gay” não é usada somente como ofensa, como também para explicar abusos e a pedofilia que alguns personagens praticam. Há ainda, como comentado anteriormente, situações em que Ash usa de seu corpo como distração ou forma de persuadir a sair de certas situações, e, independente de quem seja seu alvo, a estratégia funciona caracterizando a atração entre o mesmo sexo apenas como uma perversão a ser provocada.
Apesar de sua caracterização como Yaoi e da expectativa criada por uma boa parte do público, não existe dentro de todos os 24 episódios qualquer contraponto ou abordagem mesmo que secundários que tragam um prospecto positivo de uns relacionamentos homoafetivos, a dubiedade dos personagens principais garantem que os únicos relacionamentos românticos minimamente saudáveis que são sugestionados ao longo da história sejam sempre heteronormativos. O problema não seria tão grande se tais concepções tivessem sido deixadas nos anos 80, entretanto ainda hoje essas são algumas das ideias e estereótipos negativos utilizadas como forma de ataque e agressão a comunidade LGBT.
É preciso, no entanto, reconhecer que considerando sua época de lançamento, o manga apresenta uma série de inovações para seu tempo e temas que até hoje não são comumente tratados de forma tão crua em obras parecidas. Com destaque principalmente a criação de Yut-Lung Lee. Deixando de lado uma analise de sua índole e escolhas no decorrer da trama, é difícil encontrar personagens não-binários construídos de forma tão singela e fluida mesmo em obras mais atuais tão complexos e moralmente profundos quanto elu.
BANANA FISH é uma história extremamente excepcional e única para sua época, que consegue abordar temas extremamente complexos em personagens tão complexos quanto, sem exceder na glamorização destes. Somos apresentados aos horrores do mundo ao mesmo tempo em que vemos a leveza da construção de uma relação genuína e verdadeira entre dois jovens garotos com passados tão distintos, mas ainda assim tão parecidos. A história ainda consegue de forma excepcional abordar uma enorme diversidade de realidades, vivencias e personalidades. Entretanto é inegável que seja manchada pelos preconceitos e pensamentos externos que a envolvem na época de seu desenvolvimento a tornando datada. Se é possível que sua adaptação quase trinta anos depois se adeque as novas tecnologias para dialogar com o presente de seu relançamento, é dever dessa adaptação também se modernizar quanto a tais pensamentos retrógrados que ainda não foram deixados tão pra trás assim.