Aquém das Nuvens: O realismo mágico de um amor preto

Viu&Review
8 min readAug 27, 2020

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Por: Luan Santos

“Em geral, os meios de comunicação social nos dizem que as pessoas negras não estão amando, que nossas vidas são tão carregadas de violência e agressão que não temos tempo para amar.”

Bell Hooks no livro “Salvação: Pessoas negras e amor”

A obra da escritora e intelectual negra Bell Hooks reflete sobre a importância do amor para pessoas negras, não só como vinculo afetivo, mas político. Hooks questiona as mídias de produção de discurso — audiovisual, literatura, etc. — na forma com que a narratividade aborda as relações afetivas entre pessoas negras sempre a partir do trágico, ligado a problemáticas sociais como o racismo e suas diversas manifestações na vida de pessoas negras. Filmes de romance que narram a relação de pessoas negras pautadas pelo racismo são comuns e, me entenda bem, totalmente necessárias devido ao impacto que o racismo causas nas nossas subjetividades, por serem críticos as formas como a sociedade e o Estado brancos encarceram, extermina, desempregam e marginalizam pessoas negras, sobretudo homens negros. Nessas narrativas as mulheres negras quase sempre são representadas como pilares dos homens negros, onde precisam agüentar o mundo nas costas — filhos, trabalho, casa –, ser uma companheira presente para seus maridos e a lidar com a própria subjetividade afetada pelas manifestações do racismo e violências de gênero. Filmes como “Se A Rua Beale Falasse” (2018) de Barry Jenkis ou “Middle of Nowhere” (2012) de Ava Duvernay são incríveis e extremamente críticos contra as opressões raciais e o peso que recai sobre as mulheres negras, mas apresentam visões mais trágicas sobre relacionamentos entre pessoas negras, onde o afeto dos casais é afetado e atravessado pelas violências raciais.

“Aquém das Nuvens” (2010) de Renata Martins, diretora e roteirista de uma sensibilidade única, se relaciona diretamente com o texto e as obras de Bell Hooks ao narrar o amor e afeto de um casal idoso negro centrando a narrativa na relação que eles construíram em 30 anos de casamento. Desse modo, “Aquém das Nuvens” é, antes de tudo, um filme de romance entre pessoas negras, e por isso mesmo é extremamente político, tanto por ser realizado por uma equipe composta majoritariamente por mulheres negras pela produtora Preta Portê — que tem uma atuação fantástica no audiovisual –, quanto por narrar com leveza e carinho os afetos de um casal, lançando um olhar focado na magia que habita em um amor negro.

“Aquém das Nuvens” 2010 — Dir: Renata Martins

Sinopse: Nenê é casado com Geralda há 30 anos. Em uma tarde de domingo, como de costume, ele vai à roda de samba encontrar os amigos. Ao voltar para casa, surpreende-se com uma notícia sobre Geralda. Sem deixar que o ritmo do samba caia, Nenê encontra uma solução para ficar ao lado de sua eterna namorada.

A sinopse e o plano de abertura do curta-metragem que se intercala rapidamente entre os créditos iniciais, já nos coloca dentro da situação que vai permear a narrativa, como uma forma de nos confortar antecipadamente do que está por vir. O samba que apresenta Nenê (Mestre André) enquanto ele se arruma elegante e bonito para ir ao samba no domingo embala o inicio do filme e revela aspectos da personalidade do protagonista. Nenê é animado, vívido, engraçado e atencioso, como o próprio samba. Geralda (Cleide Queiroz) côa café na cozinha quando Nenê a puxa levemente para dançar enquanto cantarola o samba. A relação de amor e a felicidade do casal são evidentes, fazendo-se transbordar pela tela nos preenchendo de afeto. Um amor tranqüilo como um dia de domingo qualquer. Exceto que não é um domingo qualquer. Geralda recebe a visita de uma vizinha que sente o cheiro de café exalando da cozinha. Geralda transborda simpatia e convida a vizinha para tomar um café. A sensibilidade na forma de narrar o cotidiano tão presente na vida dos espectadores é sensacional, ativando nossas memórias afetivas como o cheiro do café especial de nossas avós e mães que sentimos por anos. O roteiro, assinado por Renata Martins, dilui informações sobre o estado de saúde de Geralda sem soar expositivo demais e afetar o impacto da cena seguinte. O samba que embala os passos de Nenê na roda é sufocado progressivamente por sirenes de ambulância que causa um contraste entre a felicidade de uma roda de samba e a preocupação das sirenes de uma ambulância. O som de sirene ouvido por Nenê antecipa a chegada da própria ambulância, funcionando como um pressentimento ruim sentido pelo protagonista e sua ligação extremamente forte com Geralda, os deixando próximos mesmo que distantes geograficamente. O copo de vidro que quebra e marca a saída apressada de Nenê para casa é um dos grandes momentos da montagem do curta-metragem, garantindo a urgência da situação e reforçando a união que envolve esse relacionamento. A atuação de Mestré André como Nenê é fantástica, transitando com maestria entre os sentimentos conflituosos e diversos que o protagonista vivencia em um domingo atípico. O samba também é composto dentro da trilha sonoro com diversidade de sentimentos que causam no publico, como na cena em que Nenê, coberto por luzes vermelhas e azuis da sirene, observa Geralda indo ao hospital. O som da cuíca, instrumento característico do samba, ressoa por entre a trilha dramática que preenche a cena, reforçando a tristeza presente no protagonista, sua relação intima com o samba e a própria variedade sentimental desse ritmo musical tradicional afro-brasileiro. Sem poder fazer companhia para Geralda no quarto de hospital, Nenê decide se juntar a ela e falseia que está passando mal para estar no hospital com sua amada. O companheirismo de Nenê e seu compromisso com o casamento é lindo, enche os olhos vê-lo tentar de todo o jeito ficar o mais próximo de Geralda. A solidão que acomete pessoas idosas pela viuvez, assim como o distanciamento dos filhos e netos ocupados com sua própria vida, é retratada com uma suavidade tremenda. Apesar de terem filhos e netos, Geralda e Nenê só podem contar um com o outro nesse mundo, e ficar sozinho é a pior fatalidade para quem compartilhou a vida por 30 anos. Apesar da tristeza que acomete o protagonista, ele encara a vida do seu jeito particular e com um bom humor de tirar o chapéu.

O roteiro é excelente, construindo camadas e nuances que revelam a sensibilidade desse homem negro, ao mesmo tempo em que consegue ir do humor ao drama com facilidade, sem soar insensível com a dramaticidade da situação. Os diálogos são preenchidos por uma sensibilidade única, românticos e carinhosos, como uma mão que afaga o rosto com ternura. A fotografia reforça esse carinho que todo o filme possui, através de uma composição de planos que demonstra todo amor, cuidado e afeto do casal. Os planos-detalhes nas mãos e pés se concentram nas pequenas ações que gritam grandes sentimentos. Vale ressaltar que a fotografia, assinada pela Taís Nardi, trabalha a paleta de cores repletas de brancos e azuis de forma atenciosa e esteticamente linda que traz sentimentos de tranqüilidade, enaltecendo a pele retinta dos personagens em contraste com o branco que compõe a mise-en-scène. A iluminação com poucas sombras reforça a suavidade da narrativa. A direção de arte assinada por Renata Rugai nos coloca nesse lugar de tranqüilidade pelas cores e evidencia objetos cotidianos de nossa vida, ao mesmo tempo em que nos transporta para um lugar mágico como um céu tranqüilo para se repousar sob nuvens brancas e macias.

“Um dos principais problemas que alguém enfrenta quando se esforça para criar imagens afirmativas de pessoas negras amorosas através da classe é a constante insistência de que as imagens da vida negra sejam realistas.”¹

Bell Hooks

A palavra “Aquém” significa “do lado de cá, deste lado” e o titulo do filme vai guiar todas as escolhas discursivas e estéticas da narrativa. “Aquém das Nuvens” faz um movimento duplo de ao mesmo tempo em que insere esse casal negro feliz e afetivo, sem as violências do racismo os infligindo dor, dentro de uma realidade possível para pessoas negras vivenciarem o amor, distancia essa narrativa de uma realidade “concreta”, potencializando o mágico e fabulando sobre nossas existências. As nuvens que surgem em imagens cotidianas, como a fumaça do café sendo coado nos transmuta para outras possibilidades de interpretação da narrativa e para um mundo particular daquele casal. O céu ou paraíso para Nenê e Geralda é a vida que construíram por 30 anos e que, através de interpretação pessoal, não se encerra na fatalidade da morte física. A montagem nos fornece uma “fuga” da dor daquela situação, nos oferecendo imagens felizes e animadas de um casal extremamente amoroso.

A narrativa não só opera na construção de um amor preto saudável e afetivo através do mágico que se manifesta no cotidiano, como também desconstrói uma masculinidade preta patriarcal, ancorada no racismo, que os meios de comunicação de mídia forjam e distribuem massivamente. Homens negros retratados como violentos, ausentes, impossíveis de serem afetuosos e, com isso, sem humanidade é o que a mídia nos bombardeia a todo o momento. Nenê rompe essas representações de homens negros diversas vezes durante o curta, se mostrando afetivo, atencioso, amoroso e expondo seus sentimentos de forma sincera.

“Coletivamente, podemos romper com a masculinidade patriarcal sufocante e ameaçadora imposta aos homens negros e criar visões férteis para uma masculinidade negra reconstruída que pode dar aos homens negros formas para salvar suas vidas e as de seus irmãos e irmãs de luta. (p. 213)” Bell Hooks no capítulo “Reconstruindo a masculinidade negra”²

Quando chega o momento da despedida, ao menos momentânea, a cena é repleta de um afeto que nos faz chorar assim como Nenê, que agora precisa seguir em frente sem a sua amada. O realismo mágico que marca o plano final é lindo, leve, delicado e que eu não vou fornecer interpretações, pois o filme é muito maior do que a minha experiência pessoal.

“Aquém das Nuvens” é um filme de amor — dedicado a Maria do Rosário Martins e José Eloi Martins, pais da diretora e roteirista — que constrói uma realidade mágica sobre a vida de um casal amoroso e opera na construção de novas possibilidades narrativas e imagens de afeto entre pessoas negras. A existência de pessoas negras não está condicionada a experiência do racismo. Que nossas imagens e imaginários sejam o terreno fértil onde representações saudáveis irão surgir, afinal “Se o amor não está presente em nossa imaginação, não estará presente em nossas vidas.”³

Link do filme “Aquém das Nuvens” (2010) Dir: Renata Martins: https://www.youtube.com/watch?v=nwE9tEXft4w

Referências:

¹; ³ “Salvação: Pessoas negras e amor” 2001 de Bell Hooks

² “Olhares Negros: Raça e Representação” 2019 de Bell Hooks

Vinícius da Silva traduz e discute os livros de Bell Hooks no contexto de um curso online “Introdução ao pensamento de Bell Hooks”. Conheçam o trabalho de Vinícius da Silva Link: https://medium.com/@viniciuxdasilva https://medium.com/pirata-cultural/masculinidades-feministas-e-n%C3%A3o-violentas-819541e214d1

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