Alerta! Crítica Acadêmico Zona

Viu&Review
3 min readMay 6, 2021

Por: Lina Cirino

Grace Passô produz imagens mentais apenas com instruções vocais, nos primeiros minutos de Vaga Carne. Sob uma imagem de fundo preto — simbólico — uma voz induz sentir fenômenos e objetos de forma sinestésica. Opera na primeireza, em termos semióticos Peircianos. A voz de Vaga Carne, que sabe muito bem explorar a fonética das palavras e já invadiu vários pathos (e/ou patos?) menciona diversas vezes essa palavra: perceber. “Perceber é um ato voluntário e não uma simples abertura para o acometimento por sensações”, conforme Julio Pinto. Não é algo que nos acontece, é algo que fazemos.

Percebi em Vaga Carne um filme-performance, um filme-ensaio, um filme-poema, um filme híbrido (importa mesmo a sua categoria?). Conforme Zumthor, performance é jogo poético, desdobramento do ato e dos atores. Grace Passô usa a voz e o corpo como principais instrumentos (poéticos e discursivos) na construção da narrativa de Vaga Carne. O gesto, a voz e o corpo, neste espaço performacional (vazio) tecem e elastecem a palavra que transcende um contexto verbal.

(Vaga Carne, Grace Passô, 2020)

A palavra, em Vaga Carne, é processo, ato e instância que convida os espectadores a também performar. Os espectadores são corporificados em personagens. Inicialmente, na plateia, vêem e escutam Grace Passô e produzem reações que fazem alusão ao estranhamento, de Brecht, ou ao olhar opositivo, de Bell Hooks. “Olhos são faróis. Olhos são ferozes”. Até que também interagem e produzem, junto com Grace, uma teatralidade expandida, reflexo de um processo e uma produção do olhar. De forma direta ou indireta, Grace Passô evoca o Espectador Emancipado, de Ranciére e a dimensão performativa de André Brasil.

As cenas imagéticas centradas na presença do corpo — outra palavra repetida diversas vezes no texto-roteiro verbivocovisual de Grace — colocam em evidência também processos internos, olfativos, táteis, visuais, gustativos, para a construção de percepções e para a evocação de memórias. O mesmo corpo, esquecido por Platão, quando fez a apologia das ideias absolutas. O mesmo corpo que foi objetivado pela filosofia cartesiana. O mesmo corpo disciplinado, como alertou Foucault. O mesmo corpo indissociável da ideia de mundo, conforme Merleau Ponty. O mesmo corpo, que é 70% água e muitos outros elementos, e quase sempre esquece que é natureza também, como lembra Ailton Krenak. O mesmo corpo oprimido institucionalmente, segundo Angela Davis. O mesmo corpo?!

Quando a voz identifica que é de uma mulher negra, ela é silenciada. Não ouvimos sua voz feroz. Se, como afirma Júlio Pinto, perceber é um ato voluntário, eu — percebedora — fiz um gesto deleuziano logopático, durante este final. Lembrei da provocação de Spivak: pode o subalterno falar? E em seguida, lembrei de uma frase pichada na parede esquerda de uma igreja cristã que fica aqui na rua onde moro: “Eu vi Deus. Ela é uma mulher negra”.

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