A paixão de JL: o encontro entre as linguagens de Nader e Leonilson
Por Lina Cirino
É sobre José Leonilson e Carlos Nader que vou falar hoje. O doc é de 2015, mas eu vi esse final de semana: tem no Youtube. Os filmes do Nader — que ele denomina de filhos — não documentam pessoas, mas encontros: entre ele e o outro. Não são sobre alguém. São com alguém. Nesse caso, “A paixão de JL” é o encontro das sensibilidades de Carlos Nader (cineasta) e Leonilson (artista plástico). Ambos partem da imagem enquanto linguagem predominante de seus produtos. Leonilson criou mais de quatro mil obras enquanto estava vivo — parte delas alinhavadas em experiências e reflexões sobre sua masculinidade: assustadoramente esmiuçada pelos fragmentos que ouvimos de sua voz.
Ele gravou em fitas k-7 devaneios, idéias, pensamentos, angústias, medos, alegrias, perguntas — percepções e sensações — sobre seus atravessamentos. É brutal a sua sinceridade conosco, quero dizer, com suas fitas — que quase vinte anos depois foram parar nas mãos do seu amigo. Carlos Nader costurou muito bem o material que recebeu: a voz de Leonilson nos conduz para um mergulho de divã, onde vemos-ouvimos ações e discursos amalgamados.
“É a segunda vez que eu sonho que eu tenho medo de uma pessoa que vive livre assim de fora… ele vive fora de casa e é completamente lírico, é um pan… e toda vez que eu vejo ele se aproximar, eu fecho a porta. Vou fechando fechadura por fechadura, os trincos, tudo. Eu sei que é completamente inofensivo, quer dizer, eu não sei nada! Eu nem sei porque é que fecho tanto as portas. Mas eu fico horas fechando as fechaduras das portas. E ele fica tocando as grades da janela, tipo uma harpa, e eu não consigo encarar. Não consigo nem pensar nisso.” Ouvimos sua voz enquanto vemos rolar a fita k-7 logo nos primeiros planos. Somos apresentados ao principal arquivo utilizado na narrativa: sua voz pintando um diário íntimo dos seus últimos três anos de vida. Mas ele não sabia que ia morrer. Não foi um registro de morte ou uma despedida. Ele queria gravar uns pensamentos, uns sentimentos, umas coisas para um possível livro.
Não se trata de um diário escrito, mas audiovisual — ou foi assim que o Nader se apropriou dos áudios: diferiu seu uso, transferindo um gesto de criação ao arquivo. Não foi um livro, mas bem que poderia ser um filme. E desse forma, Nader reencontra seu amigo Leonilson. A partir das suas escolhas narrativas-fílmicas, alguns aspectos que poderiam passar despercebidos são evidenciados; outros construídos, desconstruídos, reconstruídos.
A montagem de Nader nos alerta desde o início do filme o quão doloroso era para Leonilson encarar os atravessamentos de sua sexualidade: era tema de boa parte de seu trabalho — absurdamente pessoal e intimista. Suas obras são autobiográficas e atravessam, além de subjetividades, questões sociais. Os quadros, desenhos, esculturas, bordados compõem obras que desobedecem a linearidade temporal e remetem a tramas, dramas, reflexões e afetos.
Carlos Nader (assim como Leonilson) costura muito bem fragmentos. E a sutileza de ambos encanta. Beirando ao minimalismo, muitas obras do Leonilson são “simples e estranhas” — nas suas palavras. Nader opera linguagem semelhante: utiliza poucas ferramentas para contar essa história — a voz e os trabalhos do Leonilson, basicamente. As gravações já são prato cheio pra narrativa: ele fala sobre política, paixões, arte, sexo, desilusões, medos. Um trecho aqui e acolá do Jornal Nacional, de cenas de filmes ou clipes de músicas comentadas pelo protagonista, como o dia em que escutou a música Cherish, da Madonna, e chorou. O cineasta aproveita para costurar associações interessantes na montagem: vemos o homem com o rabo de peixe, no clipe da Madonna, nadando em algumas assinaturas adotadas por Leonilson em alguns trabalhos. O documentário não cai no clichê de depoimentos de parente, amigo, periquito, papagaio. Não tem entrevistas antigas. Não tem sua imagem. Fazemos a sua imagem enquanto ouvimos — lágrimas, sorrisos, suspiros. Pausas.
“Eu penso muito no Eitan. Hoje a gente se abraçou, a gente não se beijou nem transou, não fez nada. A gente ficou juntinho assim… tão gostoso. Ficar juntinho. Há tanto tempo que eu não tinha essa sensação de ter alguém que queira ficar juntinho de mim…”. Ele nos convida a refletir sobre desejo, sobre amor erótico e não erótico, sobre críticos de arte, sobre suas próprias criações, sobre escolhas, sobre a morte, sobre tanta coisa, sabe? É brutalmente-sensivelmente sincero. O filme é tão bonito (com seus defeitos e qualidades)… não é sobre o Leonilson. É com o Leonilson. É um encontro.