Quando a realidade parece ficção, é hora de fazer mockumentary: Uma breve analise de como um subgênero mudou a indústria das séries de comédia

Viu&Review
7 min readMar 11, 2021

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Por: Thainá Dayube

A linguagem como forma de brincar com os limites da realidade

The Swiss Spaghetti Harvest

Nos últimos 15 anos, um novo jeito de fazer comédia conquistou espaço na indústria de televisão americana. Partindo da premissa de um documentário, o mockumentary surgiu como uma forma diferente de cativar o público, estreitando a relação entre o telespectador e a ficção.

Uma das primeiras abordagens desse hibridismo entre o real e ficção vem do final dos anos 30, no rádio, quando Orson Welles, em 1938 levou a uma rádio estadunidense o programa Guerra dos Mundos. Baseado no livro homônimo do escritor H.G. Wells, o programa narra uma invasão alienígena à terra. Até hoje se fala do pânico causado entre os ouvintes, que em grande parte acreditou ser uma invasão real.

Já na televisão, The Swiss Spaghetti Harvest (1978, BBC) é considerado o primeiro mockumentary. Nele, é narrado a história de uma colheita de espaguete por uma família suíça que cultivava “espagueteiros” em sua propriedade. Na reportagem, enquanto a família colhe “os frutos”, um narrador explica os detalhes do cultivo, da colheita e do preparo.

O mockumentary — termo que vem da junção das palavras mock (zombar, em inglês) + documentary (documentário, em inglês) — tem como seus principais elementos a fotografia e a relação que se cria entre a câmera e os personagens — a quebra da quarta parede com o público e com a equipe de filmagem costuma ser frequente. Nessa linguagem, a câmera dá o tom da narrativa e acaba se tornando personagem. Outro aspecto característico dessa abordagem são as entrevistas (ou Talking Heads). Os Talking Heads são um elemento clássico do documentário e a partir delas, o público é contextualizado através dos personagens, que por meio de suas falas, torna possível o acesso às suas motivações, contradições, sonhos e desejos.

Novas abordagens da comédia para televisão

The Office

Tendo como ponto de partida a programação recente das emissoras, pode-se tomar The Office (2005–2013, Greg Daniels) como a obra responsável por inserir o formato no gosto do público. Baseado na série britânica de mesmo nome (criada por Ricky Gervais e Stephen Merchant, exibida em 2001), tem como mote a gravação de um documentário que quer mostrar o cotidiano dos funcionários de uma empresa de papéis a partir de depoimentos e cenas do dia a dia do escritório.

Em The Office, a presença da câmera intimida seus personagens de certa forma, mexendo com suas vaidades, forçando eles a agir de uma forma artificial, com o objetivo de aparecer bem diante das câmeras. Assim, quando o camera man consegue captar situações com a câmera escondida, temos ótimos momentos dos personagem agindo de forma natural.

O uso da linguagem documental sem dúvida é o grande trunfo da série. Diferente de grande parte das produções de comédia da época, The Office dispensa o uso de claque (a pausa com risadas e aplausos) e abusa do uso da câmera na mão, com uma iluminação bastante uniforme. A constante presença da câmera entre os personagens cria neles uma interessante consciência de estarem sendo filmados, transformando essa tensão em um jogo entre eles e o público.

Essa consciência da câmera também adiciona mais uma camada na narrativa, já que muito do discurso cômico da série não é expressado verbalmente e sim através de reações físicas e olhares dos atores. A comédia de The Office muitas vezes é mais física do que verbal.

Outro ponto interessante de ressaltar na estética da série, é o uso evidente da câmera na mão, com vários takes desfocados ou em que a câmera fica dançando entre a cena, dando zoom em meio a diálogos e expressões. O som sem as tradicionais trilhas sonoras e um som ambiente saliente, também ajudam na ênfase ao suposto realismo.

Criando novas narrativas para o público

Parks & Recreation

Pegando a carona do sucesso de The Office, um pouco antes do final da série, outro produto de comédia também se firmou entre o público utilizando da linguagem de mockumentary. Parks & Recreation (2009–2015, Greg Daniels, Michael Schur) conta a história de Leslie Knope, uma servidora do governo que sonha em construir uma carreira política. Ao longo de 7 temporadas, acompanhamos ela e seus companheiros de trabalho em diversas situações de suas vidas (dentro e fora do trabalho), na fictícia cidade de Pawnee.

Aqui, vale ressaltar que enquanto em The Office a presença da equipe de filmagem é justificada pela gravação de um documentário, em Parks não há nada sendo produzido. Mas, apesar de não haver a justificativa do documentário e a metaliguagem de uma equipe participando da história, Parks & Rec tem uma linguagem muito parecida com The Office.

Câmera na mão, movimentos rápidos e bruscos procurando um personagem em meio a cena e depoimentos para a câmera também fazem parte da narrativa. Porém, Parks possui uma quantidade bem maior de cenas externas ao local de trabalho. Ao longo das temporadas acompanhamos os personagens em suas casas, festas de aniversários, casamentos e muitas outras situações, e esses elementos acabam contribuindo para intensificar o estilo documental da série.

Consolidação da estética do mockumentary

Modern Family

Devido a todo o sucesso desse formato na comédia, muitas produções bebem da fonte do mockumentary sem assumir todas as suas características e utilizando apenas alguns aspectos como ferramentas de humor. É o caso da recém finalizada Modern Family. A série que começou em 2009 e foi até abril de 2020, foi criada por Christopher Lloyd e Steven Levitan e conta a história de 3 famílias relacionadas e suas variadas formas de viver. Como a produção durou 12 anos, fomos acompanhando os personagens crescerem e envelhecerem e o uso contínuo de temas da atualidade.

Em Modern Family as Talking Heads e alguns movimentos de câmera são parte importante da narrativa, mas não há uma quebra muito grande da quarta parede e a câmera, diferente das duas obras já citadas, não é reconhecida como um personagem.

Optar por esse tipo de linguagem não é uma escolha aleatória, ela passa pela construção do universo da série e pela forma de como se decidiu contar essa história. A relação entre familiares é um tema bastante comum e batido por diversos gêneros do audiovisual, tendo na comédia uma grande quantidade de sitcoms que tenham essas abordagem, por isso, para se colocar de forma diferente de outras produções, Modern Family tenta essa aproximação com o documentário, utilizando-se de recursos do cinema direto por exemplo.

Outro exemplo de produções atuais que se aproveitam de alguma forma dessa linguagem mesmo não se encaixando no subgênero é Brooklyn 99 (2013-presente, Michael Schur, Dan Goor), que também traz uma forma bastante atual de se fazer comédia em sua estética, sem uso de claques e se aproveitando bastante do estilo de câmera na mão e muito uso de zoom nas expressões dos personagens. Mas aqui, o narrativa não se propõe ser um mockumentary, já que os personagens não tem consciência da câmera, não existindo interação entre eles e o objeto ou eles e o público através de olhares, expressões ou Talking Heads.

Esse formato caiu tanto no gosto do público trazendo bons frutos a indústria que até mesmo em séries que passam longe da proposta dos produtos citados, é possível ver a influência do subgênero. É o caso de Fleabag (2016, Phoebe Waller-Bridge), por exemplo, que apoia a maior parte da sua proposta de humor através da relação entre a protagonista e a câmera ou a protagonista e o público.

Uma nova era na comédia

Atualmente, podemos ver como o público se acostumou ao falso documentário de comédia e às suas novas formas de fazer piadas, que agora são provenientes do silêncio ou de um olhar desconfortável de um personagem.

Se o documentário é visto como um formato que tem como objetivo retratar a realidade de forma mais concreta possível, é entendível que para simular um universo ficcional no cinema, ele seja utilizado como referência. Assim, o mockumentary surgiu, se tornando mais uma estratégia de cineastas para garantir uma narrativa crível ao seu público.

A utilização dessa abordagem na televisão veio para consolidá-lo como formato cinematográfico e também para ampliar as formas de criação de produtos audiovisuais televisivos. O subgênero do mockumentary deu um novo gás nas produções de comédia, que deixa pra trás piadas contadas diretamente e risos ao fundo, trazendo para o espectador uma nova forma de se identificar e se divertir.

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