A gente acaba aqui: sobre ser finito e abraçar o desenredo

Viu&Review
4 min readAug 26, 2021

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Por Otávio Conceição

Não se preocupe, meu amigo
Se este for o fim, então assim será
Nada se moverá sem que mandemos
Ah, não se preocupe
Não é contra os nossos princípios morais
É quase legal
Toque, meu amigo
Enquanto o mundo inteiro
E nações inteiras como animais desejam:
Poder

Quando a manhã vier
Ainda somos humanos?
Como saberemos?
Como sonharemos?
Como amaremos?
Como saberemos?

— Trecho de “Hallelujah money”, música da banda Gorillaz feat. Benjamin Clementine

Sinto que as vezes ( de antemão me culpo por não conseguir dissociar meu texto, o filme e a música desse contexto tenebroso do presente mas…) parece repetitivo dizer que estamos passando por um genocídio. Um genocídio atípico e que se faz presente de forma pessoal. Se faz presente talvez por conseguir mais destaque atualmente nos noticiários, mas longe de ser o nosso único e atual genocídio.

Evidentemente, existem recortes e subgrupos que permeiam a destruição plural dos nossos corpos.

A morte ficou mais em pauta do que de costume? É fácil formular esse tipo de pergunta. Ela não precisa de um raciocínio longo e embasado, e sua resposta não conseguiria fugir do agora. A conversa por ela gerada poderia se restringir a uma única pauta. Mas, e necessito que você faça um exercício mental neste ponto, você já percebeu que em muitas das conversas que temos sobre a morte, os diálogos repousam nas sensações da finidade e como reagimos a morte dos nossos e dos outros?

Em algum momento da década passada, meu tio morreu. Assim. Simplesmente (nenhuma morte é simples) e ocasionalmente (algumas são por acaso, e essa definitivamente foi). Recebemos um comunicado de suas irmãs, minhas tias, e prontamente minha família e eu fomos ao velório. Parecia estranho, eu era bem mais jovem e seria minha primeira vez nessa espécie de ritual de desenredo. Tinha uma ideia mais fúnebre e melancólica sobre todo o processo de despedida de um indivíduo que era amado por toda a família…e minha perspectiva sobre a morte não poderia estar mais longe da realidade. O que se encontrava ali era pessoas rindo e celebrando a vida do meu tio. Sua filha pequena jogava cartas comigo, os adultos “bebiam o defunto” e contavam histórias sobre o finado. Claro, tinham espaço para lágrimas e dor pela perda, mas isso não consumia o local de forma alguma. Foi quando uma prima gritou pela sala: “Estamos muito felizes, não devíamos estar assim!”, em um tom de repreensão. Uma das minhas tias prontamente respondeu: “Estamos felizes porque ele era feliz”.

Não se engane pensando que estou corroborando com a ideia de que a morte deve ser celebrada. Pelo contrário, a morte é ingrata, revoltante e mesquinha. O que quero mostrar é como os rituais estão sendo afetados a partir do impacto constante da morte ao redor dos vivos. Essa reação da minha família perante a morte de um ente querido, foi uma reação desenvolvida com o tempo, e os próprios nem devem ter noção disso. A aparição do luto impactando os vivos, junto com o lembrete de que não somos imortais, é o que me fez tão interessado em escrever sobre A Gente Acaba Aqui (2021) , da diretora Everlane Moraes. Um filme que ao mesmo tempo que é filme, é lembrete, é registro, é memória. Fala sobre a morte mas é vida em dois atos.

Peço licença a Everlane e a todos os homenageados.

Existem filmes que são feitos e lançados no momento certo, num encaixe perfeito com a linearidade. A Gente Acaba Aqui é um exemplo disso. Recolher imagens de 2011 e fazer o resgate de material, contrapondo de uma forma tão sutil com o agora, é de um primor tão significativo e potente que me fez questionar se alguma vez avistei em uma obra cinematográfica, uma narrativa tão eficiente com arquivos de família.

O filme consegue se encaixar em muitas camadas e rende múltiplos debates, tanto que sinto que falei sobre ele durante todo o texto mesmo só citando seu título agora, nos ultimos parágrafos.

O registro fotográfico é pontual. Os rostos exprimem timidez, lembranças e curiosidade. A câmera passeia pelo recinto onde repousa o corpo, tudo comumente situado. Som de casa, registro de casa. Tudo dentro do comum. Algo não conversa com o local: o caixão. Ele preenche o espaço de forma que faz com que todos os indivíduos fiquem ao redor, perto da parede. E o filme causa essa dualidade de sensação figurativa/literal, naturalmente o caixão está preenchendo mais do que apenas o espaço na sala. E isso tem uma carga emotiva muito forte aqui. Vemos essa sensação novamente quando o próprio filme nomeia os homenageados. Quando damos/revelamos os nomes, transformamos a aparição em existencia, em contexto, subjetividade.

Escolhi o trecho da música “Hallelujah money” da banda Gorillaz em específico para iniciar meu texto porque, para mim, dialoga veementemente com a fala do filme que traz o título em seu discurso, e que exprime todo o seu trajeto narrativo:

Agir de hipocrisias e vaidades

e humilhar as pessoas, e porque ?

O mundo é esse,

a gente acaba aqui. — A Gente Acaba Aqui (2021)

Essa é a mensagem. A gente realmente acaba aqui. E não levamos nada conosco.

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